10 Abril 2021
No Chile, um projeto de lei de saúde mental está sendo muito criticado porque “não incorporou boa parte das observações das diferentes organizações existentes, reproduzindo um modelo biomédico de saúde que legitima, no discurso e na prática, a estigmatização de milhares de pessoas rotuladas com transtornos mentais”, denuncia Andrés Kogan Valderrama, sociólogo, em artigo publicado por OPLAS, 08-04-2021. A tradução é do Cepat.
A rápida aprovação do projeto de lei de saúde mental no Chile, tanto na câmara dos deputados como dos senadores, foi apresentada pelos grandes meios de comunicação do país como um grande avanço para aqueles que sofrem algum tipo de mal-estar subjetivo.
Não obstante, diferentes organizações da sociedade civil, usuários/as, familiares, ativistas e trabalhadores/as da saúde mental, apresentaram importantes críticas a este projeto, próximo a ser promulgado como lei, por fazer justamente o contrário do que pretende, não sendo capaz de incorporar questões mínimas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde.
Ou seja, não leva em consideração o básico em nível internacional, fazendo com que se aprofunde uma histórica fragilização dos direitos humanos de usuários e usuárias de saúde mental pelo Estado do Chile.
Uma das críticas mais repetidas é a de que o projeto de lei não incorporou boa parte das observações das diferentes organizações existentes, reproduzindo um modelo biomédico de saúde que legitima, no discurso e na prática, a estigmatização de milhares de pessoas rotuladas com “transtornos mentais”, como a aplicação de tratamentos psicofarmacológicos e cerebrocêntricos, que não contemplam a voz dos próprios usuários.
Desse modo, este projeto aprofunda a violência biomédica contra os usuários de saúde mental, já que não contempla o fechamento de hospitais psiquiátricos, que historicamente geraram práticas reiteradas de torturas a usuários e usuárias (fechamentos forçados, eletrochoque, psicocirurgias, esterilizações obrigatórias), sendo apresentadas como tratamentos com base científica.
Não surpreende, portanto, o projeto se refira explicitamente a doenças mentais, mostrando uma desatualização total com a discussão mundial a esse respeito, que enfatiza a não patologização dos diagnósticos.
Além disso, o projeto de lei também deixa de fora uma visão comunitária, centrada na promoção, prevenção e reabilitação, que apele à ideia de Bem-estar Integral, como sugere a evidência internacional, que tem especial consideração pelas populações historicamente discriminadas e excluídas de direitos (crianças, mulheres e idosos).
Tampouco o projeto dá importância a causas estruturais mais amplas de tipo social (desemprego, renda baixa, endividamento, exploração do trabalho, falta de participação, falta de moradia, discriminação, desigualdade territorial) e ambiental (perda de biodiversidade, poluição, falta de água), que evidentemente afetam a saúde mental das pessoas no Chile.
Diante disto, é muito preocupante que a classe política no Chile, da esquerda à direita, conservadores ou progressistas, aprove um projeto deste tipo. Sobretudo, considerando o momento histórico de caráter constituinte vivido pelo país, que busca justamente responder às demandas históricas da população.
Ao que parece, todos fazem parte de um consenso biomédico sobre a saúde mental, completamente desconectado das necessidades do Chile nesta matéria, virando as costas para milhões de sobreviventes da psiquiatria, que felizmente conta com muitos fortemente organizados na sociedade civil, apelando a uma crítica muito mais estrutural à biopsiquiatria e ao negócio farmacêutico que a sustenta economicamente.
Uma delas é Lorena Berríos (louca lúcida, ativista ecofeminista), que em sua crítica demonstra como o consenso biopsiquiátrico também se entrelaça com um sistema neoliberal, patriarcal, colonial e extrativista, que vê as dissidências psicossociais como perigosas por não ser “produtivas” e nem “úteis” para a sociedade de consumo, motivo pelo qual se busca incessantemente o controle de seus corpos através da medicação e o fechamento.
É por isso que no Chile e em diferentes países no mundo, há vários anos, ocorrem encontros e marchas pelo orgulho louco, que buscam ressignificar um rótulo que foi amplamente utilizado para desmerecer e fragilizar os direitos das pessoas, somente pelo fato de serem diferentes e não estarem dentro do imaginário ocidental de um indivíduo moderno racional, separado da comunidade e da natureza.
Por esta mesma razão, talvez fosse necessário ir além da ideia de Bem-Estar Integral proposta e caminhar em direção ao Bem Viver, que permita religar o que o capitalismo separou (razão-emoção, cultura-natureza), em favor de promessas insustentáveis como o progresso e o desenvolvimento, que reduziram e destruíram vínculos que sustentaram os seres humanos por séculos.
Consequentemente, reivindicar as loucas, loucos e loques nada mais é do reconhecer a diversidade psicossocial existente no país, o que para as e os parlamentares no Chile não parece um tema central, ao se situarem em um paradigma biologicista de saúde mental, que causa mais dano do que contribui com a vida de muitas pessoas que sofrem algum tipo de sofrimento ou mal-estar subjetivo em suas vidas.
Esperemos que as e os novos constituintes que forem eleitos, no próximo mês de maio, no Chile, escutem e reúnam as demandas deste importante movimento pela dignidade psíquica das pessoas, para assim construir um país diferente, que não deixe ninguém de fora.
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Chile. Consenso biomédico e lei de saúde mental - Instituto Humanitas Unisinos - IHU