09 Fevereiro 2021
Irmãs católicas e agentes humanitários estão alarmados com as desigualdades na distribuição mundial da vacina contra a Covid-19, dizendo que elas representam mais ameaças ao já abalado Sul global.
A reportagem é de Chris Herlinger, publicada por National Catholic Reporter, 08-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“As nações mais ricas compraram doses suficientes para vacinar suas populações inteiras por quase três vezes até o fim de 2021”, disse uma aliança de grupos que pede uma People’s Vaccine [Vacina do Povo] em dezembro. “As nações ricas que representam apenas 14% da população mundial compraram 53% de todas as vacinas mais promissoras até agora.”
Dois meses depois, as implicações de uma distribuição desigual da vacina no globo continuam graves.
“Uma lacuna de imunidade global coloca todos em risco”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, no dia 28 de janeiro em Nova York. “Se o vírus continuar circulando no Sul global, ele inevitavelmente sofrerá mutação”, prolongando significativamente a pandemia.
“O nacionalismo vacinal é um fracasso econômico e também moral”, disse Guterres, observando que uma pesquisa da Câmara de Comércio Internacional mostra que a pandemia poderia custar à economia global até 9,2 trilhões de dólares sem um apoio ao mundo em desenvolvimento.
“Isso é o que acontece com a cadeia de abastecimento quando os EUA e a Europa se jogam na frente e compram a vacina”, disse a Ir. Marilyn Lacey, diretora executiva da organização humanitária Mercy Beyond Borders e membro das Irmãs da Misericórdia.
“Esse é um problema muito sério não apenas em termos de vidas reais, mas também da mensagem que é enviada sobre quais vidas são mais importantes”, disse Emily Doogue, consultora técnica interina da Catholic Relief Services para a Covid-19.
A comunidade global, disse Doogue, deveria “evitar a replicação dos sistemas que privilegiam os privilegiados”.
Mas é exatamente isso o que está acontecendo. O Africa Renewal, um projeto de notícias ligado às Nações Unidas, informou no dia 3 de fevereiro que, até o dia 25 de janeiro, mais de 68 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 haviam sido administradas em 56 países, mas apenas dois ficavam na África: Guiné e a ilha de Seychelles.
No entanto, a Organização Mundial da Saúde afirma que os casos e as mortes por Covid-19 “estão aumentando na África à medida que novas variantes mais contagiosas do vírus se espalham para outros países”. Em um relatório do dia 28 de janeiro, a OMS disse que mais de 175.000 novos casos de Covid-19 e mais de 6.200 mortes relacionadas à Covid no continente foram relatadas no fim de janeiro.
A OMS observou que uma nova variante identificada pela primeira vez na África do Sul foi encontrada em Botswana, Gana, Quênia, Comores, Zâmbia e em 24 nações não africanas.
“O que está me mantendo acordado à noite agora é que muito provavelmente ela está circulando em vários países africanos”, disse o Dr. Matshidiso Moeti, diretor regional da OMS para a África.
Embora o Norte global tenha sido atingido com mais força do que o Sul global até agora, a pandemia e a necessidade de vacinação “é uma questão que afeta o mundo inteiro”, disse a missionária comboniana Ir. Esperance Bamiriyo, diretora do Instituto Católico de Treinamento em Saúde em Wau, Sudão do Sul, um projeto da rede Solidarity with South Sudan, que treina jovens profissionais de saúde do Sudão do Sul. “As pessoas no Sudão do Sul ainda não viram o pior.”
Bamiriyo elogiou as autoridades de saúde do governo do Sudão do Sul pela sua resposta geral à pandemia, mas disse que “elas não têm uma ideia clara de quando e onde” a vacina será introduzida, embora tenha dito que provavelmente virá da China.
A China tem fortes laços com o Sudão do Sul, que já enfrentou desafios consideráveis devido à guerra civil em curso que deslocou milhões de pessoas e provocou cerca de 400.000 mortes.
Dinâmicas semelhantes existem na Síria, que está tentando se reconstruir após uma década de guerra.
“Não ouvimos nada sobre a vacina para as pessoas na Síria”, disse a Ir. Annie Demerjian, da Congregação das Religiosas de Jesus e Maria, que mora na Síria. “Eu acho que não ouviremos em breve.”
Nem a Libéria, nação da África ocidental, um país que ainda se recupera de décadas de guerra. Isso é preocupante, dada a natureza mutável das novas variantes da pandemia, disse a Ir. Barbara Brillant, reitora do Mother Patern College of Health Sciences, na capital liberiana, Monróvia.
“Podemos ter mais problemas no fim, e serão mais do que aqueles com os quais podemos lidar agora”, disse ela, observando que a pandemia é apenas mais uma preocupação em um país onde os serviços básicos, como água encanada e eletricidade, são inexistentes para muitos.
Essas realidades preexistentes, dizem os ativistas, são precisamente a razão pela qual atrasos na entrega da vacina a países mais pobres são inaceitáveis.
“Esta é uma pandemia em que todos devem ser protegidos”, disse a Ir. Helen Saldanha, membro das Irmãs Missionárias Servas do Espírito Santo e codiretora executiva cessante da Vivat International, uma organização global de defesa dos direitos humanos que trabalha nas Nações Unidas.
“É um direito de todas as pessoas no mundo serem vacinadas”, disse ela.
Sean Callahan, presidente e CEO da Catholic Relief Services, concorda.
“Imunizar as populações mais vulneráveis – inclusive nos Estados Unidos e em países de baixa renda – será vital para proteger a saúde de todos e as nossas economias interconectadas”, disse Callahan em um comunicado do dia 1º de fevereiro. “Devemos priorizar a equidade, não apenas porque isso acelerará o fim desta pandemia. A questão da equidade da vacina é moral.”
Mas as preocupações morais esbarram em realidades rígidas. O Washington Post informou no dia 3 de fevereiro que a primeira parcela de vacinas distribuídas através do consórcio global Covax – descrito pela Catholic Relief Services como “um esforço colaborativo internacional para acelerar a produção e garantir o acesso e a distribuição equitativos das vacinas” – cobrirá apenas 3,3% da população total dos 145 países participantes.
Embora isso “possa ajudar alguns grupos de alto risco a serem vacinados”, relatou o Post, fica “muito aquém da demanda”.
Callahan disse que oferecer uma vacina a todos que precisam é “um desafio extraordinário”. E a pandemia e a distribuição de uma vacina são mais uma camada de desafios em países já assolados por enormes problemas.
“A vacina não está na mente das pessoas. A sobrevivência, sim”, disse Lacey sobre o Sudão do Sul, onde a guerra civil em curso e a falta de infraestrutura, incluindo estradas funcionais, pontes e controle de enchentes, tornariam o transporte da vacina até as pessoas um desafio extremo.
“A ideia de vacinar 12 milhões de pessoas sem um governo que funcione é chocante”, disse Lacey. “É uma receita para o desastre... Eu vejo um caos aqui e não sei como vão fazer isso.”
Para controlar a pandemia, alguns países devem primeiro enfrentar uma falta básica de informação.
Brillant disse que uma grande parte da população da Libéria está convencida de que a Covid-19 não é real.
“A pessoa comum que vai ao mercado não tem a menor ideia”, disse ela. Ninguém usa máscara fora de casa, e muitas pessoas não têm acesso às informações sobre a pandemia.
E, mesmo que os liberianos aceitem que a Covid-19 seja real, “80% dizem que vão rezar e ficarão seguros”, disse Brillant.
Brillant disse que o Ministério da Saúde da Libéria fez o seu melhor para educar os cidadãos com recursos limitados. No entanto, os testes para a Covid-19 são insuficientes, e os números atuais disponíveis de pessoas afetadas pelo vírus – 1.956 casos no início de fevereiro – provavelmente não refletem a dimensão das infecções.
“Não estamos testando o suficiente”, disse ela.
Brillant disse que a Libéria pode receber a vacina até o fim de março, mas o país terá uma colina íngreme a escalar: ele pode não ter a capacidade de armazenar ou distribuir a vacina com segurança e terá que superar as desinformações comuns em outros países africanos, como a de que a vacina tem efeitos deletérios, como deixar as pessoas impotentes ou estéreis.
“É uma luta difícil”, disse Brillant.
Oros Adia, gerente do programa de saúde pública da Catholic Relief Services na Nigéria, disse que a desinformação está sendo espalhada por todo o continente, com líderes políticos proeminentes, como o governador de um Estado nigeriano, que chama a própria vacina de “assassina”.
Em contraste, disse ele, os líderes católicos da Nigéria fizeram um bom trabalho ao exortar os membros da Igreja na Nigéria a usarem máscaras e a manterem o distanciamento na vida cotidiana.
Envolvimento e diligência contínuos serão necessários nos próximos meses, já que a vacina chegará “em breve” na Nigéria, disse Adia. As autoridades esperam que até 70% da população seja vacinada até o fim de 2022 para obter a imunidade de rebanho, disse Adia.
Adia disse que essa meta pode não ser fácil de alcançar, mas ele se anima com o fato de que a Nigéria foi capaz de erradicar a pólio por meio de um esforço conjunto há uma década, com um programa de vacinação que contou com a educação pública apoiada por líderes religiosos, políticos e comunitários.
“Foi uma virada de jogo”, disse ele.
Mesmo assim, a “questão da confiança” deve ser superada, disse Adia, assim como a resistência ou a indiferença baseada em uma série de desculpas, incluindo suspeitas religiosas e perguntas dos nigerianos como esta: “Por que eu devo tomar a vacina se eu nem estou comendo?”.
Bamiriyo disse que a reação é comum no Sudão do Sul, assim como a sensação de que “Deus nos protegerá do vírus”.
Ela descreveu uma recente viagem com outra irmã da sua congregação a um mercado de Wau. Ambas usavam máscaras, e os outros compradores as saudaram com risos e gritos de “corona”.
“Isso me deu a oportunidade de dizer que aquela máscara não era ‘corona’, mas uma forma de proteger a nós e aos outros”, disse ela. “Deus nos protege, sim, mas Deus ajuda quem protege a si mesmo e aos outros.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Distribuição desigual da vacina contra Covid-19 “põe todos em risco”, dizem autoridades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU