01 Fevereiro 2021
Por lucro máximo, corporações farmacêuticas bloquearam acesso às tecnologias de produção de imunizantes. Mas são incapazes de abastecer planeta em pandemia. Crise já atinge até países mais ricos. E mais: as vacinas que vão para o lixo.
A reportagem é de Raquel Torres, publicada por Outra Saúde, 28-01-2021.
Pelo menos cinco doses da vacina de Oxford/AstraZeneca foram para o lixo ontem na cidade do Rio de Janeiro, segundo relatos de funcionários ao jornal O Dia. Pode parecer uma quantidade pequena, mas, pelo que diz a matéria, é metade do único frasco que chegou a ser aberto na Clínica de Família onde o problema aconteceu. A questão é que cada frasco tem 10 doses e, depois de aberto, precisa ser usado em no máximo seis horas. Esse imunizante só podia ser oferecido a profissionais de saúde com mais de 60 anos, mas apenas cinco pessoas enquadradas em tal critério apareceram na unidade. “Está todo mundo revoltado aqui. Nossa orientação é para não dar a dose para o próximo da fila, que seriam os idosos que não são profissionais da saúde. Recebemos a ordem de jogar fora“, diz uma das fontes, sem indicar, porém, de quem partiu essa ordem.
A secretaria municipal de Saúde disse ao jornal que “todas as unidades receberam centenas de pacientes”, que não haveria motivo para o excedente e que “não houve relato de desperdício de doses”. Mas também que, caso sobre alguma, a orientação é para que seja usada nos profissionais da própria unidade.
Apesar de as falas do funcionário e da secretaria não se encaixarem, é muito provável que esse e outros casos de desperdício já estejam realmente acontecendo no país. Isso é algo que tem sido comum ao redor do mundo, por variados motivos. Alguns são banais e acontecem em toda campanha vacinação, como frascos que se quebram no manuseio ou seringas com problemas. No caso dos países que usam a vacina da Pfizer há uma questão envolvendo o número de doses de cada vidro: vinham cinco, mas depois de iniciado o uso se viu que havia líquido suficiente para uma sexta dose. Mas muitos lugares não têm seringas adequadas para extrair essa última, e o material acaba sendo descartado. Há também nações que ainda não permitiram o uso da dose excedente… Até agora, não se conseguiu mensurar a quantidade de vacina que deve ter sido (e ainda está sendo) perdida por isso. Também já foram relatados problemas com a refrigeração em países como Alemanha, Argentina e EUA.
Neste último, aliás, há toda uma discussão em torno de quantas foram afinal as doses já desperdiçadas, porque vários estados não têm relatado suas perdas. Por lá, começou a haver uma flexibilização nos grupos prioritários para evitar o problema. Há três semanas, o comissário da FDA (a Anvisa do país) exortou os estados a permitirem a vacinação de grupos de baixa prioridade caso a alternativa fosse jogar doses fora, e essa tem sido a posição das autoridades federais.
Na França, o primeiro-ministro estimou que vai haver uma perda de 25% a 30%, o que gerou espanto. Mas o número não é tão alto quanto soa: segundo um estudo da OMS de 2005, metade das vacinas distribuídas em todo o mundo é desperdiçada, em média. Claro que ninguém quer uma perda dessa ordem no caso específico da covid-19, em que doses disputadas a tapa são a única chance de nos vermos livres da pandemia. No site The Conversation, um artigo de Sarah Schiffling e Liz Breen fala dos tipos de desperdício e como minorá-los. Quando a vacinação é restrita a grupos muito específicos, por exemplo, faz sentido ter centros de vacinação em massa que consigam reunir grandes quantidades de pessoas de uma vez só, evitando as sobras (não vale aglomerar na fila, como em São Luís do Maranhão). Só não dá para esquecer das pessoas que, por qualquer razão, tenham dificuldade de acesso a esses centros. Então sempre vai precisar haver outras opções para alcançá-las, como unidades descentralizadas e equipes móveis.
De todo modo, é essencial que as perdas sejam relatadas e computadas. O registro não serviria exatamente para recriminar qualquer perda acima de zero – Kelly Moore, da Immunization Action Coalition, ressalta na matéria da ProPublica que erros sempre vão acontecer e ninguém deve se sentir pressionado a injetar uma dose comprometida nas pessoas – , mas para entender onde estão os gargalos, o que está acima do razoável e que tipo de ajuste precisa ser feito no planejamento. Infelizmente, não parece haver muitas chances de o governo brasileiro manter um bom controle disso, já que ainda não contabiliza direito nem a quantidade de vacinados.
A vacina de Oxford/AstraZeneca deve ser aprovada para uso emergencial pela União Europeia amanhã. Mas, como já dissemos por aqui, a AstraZeneca anunciou recentemente que vai atrasar a entrega das doses encomendadas com antecedência pelo bloco: em vez de entregar 80 milhões até o fim de março, serão só 31 milhões.
Junto com o atraso da chegada das doses da Pfizer, também anunciado recentemente, a notícia caiu como uma bomba – e, um mês após a consolidação do Brexit, fez crescer a tensão entre a União Europeia e o Reino Unido. Isso porque a justificativa da farmacêutica para o atraso é a de que houve problemas na produção, mas o abastecimento continua ocorrendo normalmente no Reio Unido. “A União Europeia quer saber exatamente quais doses foram produzidas pela AstraZeneca e onde exatamente até agora, e se, ou para quem, foram entregues“, escreveu duramente Stella Kyriakides, Comissária Europeia para a Saúde e Segurança Alimentar, em um comunicado.
As explicações da AstraZeneca para essa diferença não têm sido muito satisfatórias. Numa longa e polêmica entrevista ao jornal italiano La Repubblica, o CEO Pascal Soriot chegou a dizer que que “há muitas emoções em jogo neste processo”; segundo ele, o acordo com o Reino Unido é baseado em fábricas localizadas nesse país, enquanto as falhas foram identificadas em instalações na Bélgica. Ele diz ainda que o contrato com o Reino Unido foi assinado primeiro (três meses antes), então deu tempo de corrigir as falhas que surgiram por lá. Enquanto isso, o acordo com a Comissão Europeia não envolveria um “compromisso contratual”, mas de “entrega de melhor esforço”: “Basicamente, dissemos que vamos dar o nosso melhor, mas não podemos garantir que teremos sucesso“. Kyriakides retrucou: “Rejeitamos a lógica do primeiro que chega é o primeiro que se serve. Isso pode funcionar nos açougues da vizinhança, mas não nos contratos. E não em nossos contratos de compra antecipada”.
Com a indefinição, agora a União Europeia exige que a AstraZeneca comece a lhe fornecer também as doses fabricadas no Reino Unido. Além disso, anunciou na terça-feira que pretende controlar a exportação de vacinas para fora da UE, o que pode atingir outros países e, muito diretamente, o Reino Unido: suas doses da Pfizer vêm da Bélgica. Ontem Kyriakides se reuniu com Soriot, mas seguiu reclamando da falta de clareza quanto a um cronograma.
O que isso pode significar para a distribuição de vacinas ao Brasil? A AstraZeneca dividiu sua produção em várias fábricas distribuídas pelo mundo. Ao menos por enquanto, as instalações europeias não apareceram da nossa cadeia de distribuição. As doses que recebemos prontas foram produzidas na Índia (além das 2 milhões já recebidas, outras estão em negociação) e as primeiras unidades do Ingrediente Farmacêutico Ativo virão da China. Mas a matéria do Valor sugere atenção: “A vacina da AstraZeneca/Oxford é a que mais tem contratos de venda. Na semana passada, tinha acordos com 43 países, uma parte deles com nações em desenvolvimento, atraídas pela eficácia e pelo preço menor da vacina comparado a outras. Mas a conta efetivamente não fecha: os acordos envolvem volumes bem maiores de doses do que a capacidade atual de produção da companhia“.
Se países ricos – que encomendaram antecipadamente a maior parte das vacinas disponibilizadas pelos fabricantes – estão suando a camisa para fazer cumprir os contratos, dá para prever que as economias periféricas vão ficar ainda mais para trás. Essa é uma questão que temos levantado aqui há muito tempo e que não envolve só a AstraZeneca. Até agora as vacinas só chegaram a cerca de 50 países, a maioria de alta renda, e 75% das doses se concentram em apenas dez nações.
O Ministério da Saúde não decidiu oficialmente se vai mesmo comprar as 54 milhões de doses da CoronaVac que serão produzidas pelo Instituto Butantan. Então foi informado de que, se não der uma resposta até o fim desta semana, a vacina vai ser exportada em vez de atender à população brasileira. O presidente do Butantan, Dimas Covas, reforçou o que já tinha dito antes: que estão em curso negociações com países vizinhos, como a Argentina.
A prefeitura de São Paulo informou ontem que decidiu usar toda a vacina disponível até agora para oferecer a primeira dose a pessoas dos grupos prioritários, confiando em dar as segundas doses quando novos lotes estiverem prontos para uso. O governo de João Doria (PSDB) oficializou um pedido ao Ministério da Saúde para adotar a estratégia. A ideia contraria o Programa Nacional de Imunização, que prevê a reserva de 50% das lotes para a segunda dose.
O intervalo recomendado entre as doses da CoronaVac é de quatro semanas, enquanto no caso da AstraZeneca são 12. Um atraso na entrega de novas remessas poderia, obviamente, vir a alargar esse período. No Estadão, especialistas dizem que se trata de uma decisão tomada no escuro: se o espaçamento entre as doses tiver que ser aumentado, isso tanto pode dar certo como pode falhar. Afinal, não há dados sobre isso nos testes clínicos.
A Anvisa intensificou seu trabalho rumo à aprovação da Sputnik V: esta semana, vai ser reunir com a OMS e com autoridades russas para obter informações sobre o produto; pelo mesmo motivo, esta semana também se reuniu com a ANMAT (equivalente à Anvisa na Argentina), que já aprovou o imunizante.
O órgão brasileiro vem sofrendo pressão de governadores e da União Química, responsável pela produção no país. Mas, em documentos enviados ao STF, indica que a culpa pela demora é da própria União Química: a empresa estaria demorando em média um mês para responder a cada solicitação da Anvisa. Procurada pelo Globo, a companhia não comentou os apontamentos. Mas o ministro do STF Ricardo Levandowski lhe deu um prazo de cinco dias para explicar as pendências.
“Estamos com uma pandemia dessas. Os conselhos de medicina o que poderiam dizer? Primeiro, a coisa mais simples e imediata: usem máscara e evitem aglomerações. Você viu o Conselho [Federal, o CFM] dar essa mensagem para a população? Uma coisa tão simples como essa”. A crítica de Drauzio Varella na última reportagem do Intercept traduz bem o quanto a atitude do CFM tem sido danosa durante a pandemia.
Nem dá para chamar de inação: o Conselho até agiu, mas justo dando cobertura a Jair Bolsonaro em sua obstinação pelo “tratamento” com hidroxicloroquina. Em abril do ano passado, um parecer entregue pelo presidente do CFM, Mauro Ribeiro, autorizava os médicos a prescreverem a droga, incluisive nos casos leves, se julgassem necessário. A primeira fala da entidade contra os tratamentos precoces veio só recentemente, depois do escândalo do TrateCov. Mesmo assim foi tímida – e no fim de semana Ribeiro publicou um artigo na Folha dizendo que na verdade o Conselho vai continuar respeitando a “autonomia” dos médicos.
Voltando ao Intercept, o repórter Leonardo Martins conversou com ex-presidentes de conselhos regionais e ex-conselheiros que, anonimamente, falaram do alinhamento ideológico entre essas entidades e Jair Bolsonaro. É uma matéria interessante, principalmente para quem não acompanha de perto esse terreno. Além do CFM, o texto também enfoca o Cremesp, maior conselho regional do país, e lembra detalhes da polarização política nas últimas eleições para a chefia. Elas aconteceram em outubro de 2018, junto com as eleições presidenciais, e tiveram o mesmo tom – com fake news e gritos contra petismo, socialismo etc. Venceu a chapa que era contra tudo isso aí.
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Lógica das patentes provoca escassez global das vacinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU