28 Outubro 2020
"Se fazem sexta-feira da paixão, façamos domingos de ressurreição com terra partilhada e socializada, convictos de que o sangue dos/as mártires e o suor da luta fecundam o chão... Porvir de ressurreição!", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
Dia 24 de outubro de 2020, no interior do Paraná, no Assentamento Ireno Alves dos Santos, no município de Rio Bonito do Iguaçu, Ênio Pasqualin, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, após ser sequestrado, foi assassinado a tiros. Mais um mártir da luta pela terra no Brasil. “Por causa de um pouco de terra, por uma fatia de pão, mataram mais um irmão…”. O latifúndio e o agronegócio matam, mas venceremos. Nosso abraço solidário à família de Ênio e ao MST. O sangue de Ênio continuará correndo em nossas artérias. Honraremos sua/nossa luta justa e necessária. A história demonstra que quanto mais repressão, mais a luta pela socialização da terra cresce. Eis um exemplo a seguir.
Geralda Magela da Fonseca, carinhosamente chamada Irmã Geraldinha, das Irmãs Dominicanas, foi ameaçada de morte inúmeras vezes durante vários anos por causa da luta pela terra no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, em Minas Gerais. Quando identificadas, as ameaças eram sempre vindas de pessoas ligadas aos latifundiários do município. Em um único dia, ela chegou a receber três telefonemas no seu celular, de números não identificados. Depois as ameaças eram ouvidas por companheiros/as do acampamento ou por amigos/as na cidade de Salto da Divisa.
No Acampamento Dom Luciano, do MST [1], Irmã Geraldinha tinha seu barraco de madeira e palha. Ela teve que passar a dormir em barracos diferentes a cada noite no acampamento para não ser pega de surpresa por jagunços. Companheiros/as da comissão de segurança do acampamento Dom Luciano Mendes conseguiram livrar a irmã Geraldinha de três emboscadas ao descobrir que ela estava sendo esperada em tocaia. Avisada, ela mudou o horário de passar no local e passou sob escolta dos companheiros. Em outra tentativa, quatro pessoas em automóvel cor preta, dia 29 de outubro de 2007, foram vistas próximas ao acampamento procurando por irmã Geraldinha e no dia seguinte, na cidade de Salto da Divisa, alguém em um automóvel cor preta procurava por ela. [2] Em uma das ameaças, a mensagem era: “Você vai parar de apoiar o MST e essa luta quando acontecer com você o que aconteceu com a irmã Dorothy Stang”. [3]
Após visita ao Acampamento Dom Luciano, dia 17 de setembro de 2009, uma comissão de representantes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República expediu um Parecer demonstrando a gravidade do conflito agrário instalado em Salto da Divisa e também a gravidade das ameaças à Irmã Geraldinha e a outros membros do Acampamento. [4] No Parecer se afirma: “É inconteste o fato de que tais violações têm sido causadas por fazendeiros da região e por policiais civis e militares, sendo que todas elas são decorrentes das atividades em defesa dos direitos humanos realizadas pela Irmã Geraldinha e por membros do Acampamento Dom Luciano. Faz-se necessário, ainda, que sejam feitas articulações com autoridades públicas estaduais e locais no sentido de que se tomem as providências legais para que as causas das ameaças sejam resolvidas pelos órgãos competentes” (MANIFESTO DA CPT/MG, 30/10/2009). [5]
Irmã Geraldinha, mesmo após visitar sua mãe e saber que a notícia das ameaças de morte já tinham chegado a ela e aos seus 15 irmãos, reafirma sempre: “Estou disposta, sim, a entregar minha vida por essa causa justa dos movimentos populares se necessário for, se tiver que ser, para que o povo conquiste a terra e para que a reforma agrária aconteça no nosso país, pois sem a distribuição das terras devolutas e dos latifúndios improdutivos que não cumprem sua função social não haverá justiça, nem vida e nem paz na sociedade. É claro que não vou entregar de bobeira minha vida. Vamos tomar as precauções necessárias, mas estou disposta, sim, a entregar minha vida para que a luta pela terra possa continuar” (Irmã Geraldinha à TVC/BH no Programa Inconfidências Mineiras). [6]
Orozimbo da Cunha Peixoto, o coronel Zimbu, avô do prefeito Ronaldo Cunha Peixoto, tinha vários jagunços para eliminar quem o incomodava. Uma testemunha que vive na região há várias décadas, que não aceita se revelar por temer ser assassinada, afirma: “Essas fazendas aqui do Baixo Jequitinhonha foram tomadas na marra. Eles mandavam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria também”.
A entrada do acampamento Dom Luciano Mendes passou a ser controlada por equipe de sentinelas 24 horas por dia, um grupo de mulheres se revezando durante o dia e um grupo de homens durante toda a noite, sempre com alguns foguetes para explodir e chamar todas as famílias em caso de alguma coisa estranha. Uma corrente forte foi colocada na entrada do acampamento para impedir a entrada de automóveis ou motocicletas estranhos, sem autorização. Além da entrada do acampamento, à noite, um grupo de companheiros mantém ronda em todo o acampamento e seu entorno com lanternas. Após cobranças do MST e da CPT [7], o comando da PM em Salto da Divisa foi trocado e uma viatura da PM passou a ir ao acampamento duas ou três vezes por dia. Isso também inibiu os ameaçadores. A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos ameaçados, a Defensoria Pública Estadual e a Defensoria Pública da União, entre outras organizações, contribuíram para que as denúncias e reivindicações das famílias acampadas em Salto da Divisa fossem ouvidas.
Após ameaças, dia 28 de julho de 2009, quatro pessoas chegaram às proximidades do acampamento em um automóvel e atearam fogo no pasto ao redor do acampamento. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se propagou. Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferreira Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu filho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixoto, primo do prefeito eleito extemporaneamente em eleição dois dias antes, Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto, e presidente da Fundação Tinô da Cunha Peixoto na época, que alegava ser proprietária das terras da Fazenda Manga do Gustavo e da Fazenda Monte Cristo. Policiais demoraram a atender ao chamado dos acampados e, pior, ao chegarem ao local do incidente lavraram Boletim de Ocorrência acusando irmã Geraldinha e os acampados de cárcere privado dos quatro agressores que estavam no automóvel. Irmã Geraldinha teve que viajar até a – cidade vizinha - para, na delegacia, lavrar um Boletim de Ocorrência relatando os fatos verdadeiros sobre a tentativa de incendiar o acampamento.
Para inibir as investidas dos latifundiários e jagunços ameaçando irmã Geraldinha e outras lideranças do Acampamento Dom Luciano Mendes organizamos uma significativa Rede de Apoio, inclusive, internacional. O bispo Dom Tomás Balduíno, fundador e presidente honorário da CPT por muitos anos, visitou o acampamento e, ao lado do bispo da Diocese de Almenara, na época, Dom Hugo Maria Van Steekelenburg, e de outras freiras e freis, fez missão na cidade de Salto da Divisa hipotecando irrestrito apoio à causa da luta pela terra. Isso contribuiu para frear a ira assassina contra irmã Geraldinha.
Com a postura aguerrida de Irmã Geraldinha de não arredar o pé da luta, mesmo sob ameaças de morte, a luta cresceu e hoje, em Salto da Divisa, MG, já foram conquistados dois assentamentos – Assentamento Dom Luciano Mendes e Assentamento Irmã Geraldinha – e a Comunidade Quilombola Braço Forte. Enfim, eis um sinal de que as ameaças e os assassinatos não barram a luta, ao contrário, fazem a luta se multiplicar. Se fazem sexta-feira da paixão, façamos domingos de ressurreição com terra partilhada e socializada, convictos de que o sangue dos/as mártires e o suor da luta fecundam o chão... Porvir de ressurreição!
[1] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Disponível aqui.
[2] Denúncia feita por irmã Geraldinha em Boletins de Ocorrência e a muitas autoridades, inclusive no Programa Inconfidências Mineiras, da TV Comunitária de Belo Horizonte, em 60 minutos de entrevista, dia 09/11/2009, disponibilizada no You Tube em seis partes. Na 3ª parte está a denúncia das ameaças, acima, descritas. Cf. Disponível aqui.
[3] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha. Disponível aqui. Em 7’08ss
[4] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha. Disponível aqui.
[5] Cf. Disponível aqui.
[6] Cf. a 4a e a 5ª parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha. Disponível aqui e aqui.
[7] Comissão Pastoral da Terra. Disponível aqui.
Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Live Campanha pelo DESPEJO ZERO: pelo direito à vida. Despejar na pandemia é matar, é cruel. 05/8/20
2 - "A VALE preparou uma armadilha para matar o povo de Brumadinho, MG." Justiça! Vídeo 7 - 13/12/2019
3 - VALE e Estado mataram o rio Paraopeba, peixes e pescadores na miséria. Vídeo 1. 19/4/2019
4 - Dona Zinha, da Ocupação Vitória/Izidora/BH: "despejo matará todos os idosos das Ocupações." 19/11/2016
5 - Dia 25 de julho: Dia da/o trabalhador/a rural, Mulher Negra, Pai Nosso dos Mártires/1,6 ano de crime
6 - Padre Ezequiel Ramin: Mártir da Opção pelos Pobres (Documentário Verbo Filmes). 24/7/2020: 35 anos
7 - Mártires vivos na IV Romaria das Águas e da Terra da Bacia do ex-rio Doce. Vídeo 5 - 02/6/2019
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Doar a vida na luta pela terra: causa justa! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU