22 Outubro 2020
"Em tempos de crise como o que estamos vivenciando, com todas as advertências trazidas pela pandemia do coronavírus - somos desafiados à invenção, sonho, criatividade, utopia e a fazer nossas pegadas no chão da história - evitando o plágio agarrado a velhas certezas de um passado sem retorno", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e professor na Faculdade Vicentina (FAVI), em Curitiba, Paraná, sobre o livro "A força do passado na fraqueza do presente. O tradicionalismo e suas expressões" de João Décio Passos.
A força do passado na fraqueza do presente.
O tradicionalismo e suas expressões.
João Décio Passos. São Paulo: Paulinas, 2020, 248 p.
135 x 21mm – ISBN 9788535645934.
(Coleção Crítica Religiosa). (Divulgação)
O primeiro volume da Coleção Crítica Religiosa traz como foco específico o tradicionalismo de viés católico. Eis o titulo e subtítulo: A força do passado na fraqueza do presente. O tradicionalismo e suas expressões. Foi escrito por João Décio Passos. O referido autor é doutor em Ciências Sociais e livre-docente em Teologia na PUC-SP e ITESP.
Metodologicamente este estudo é um exercício de análise sócio-histórica e de discernimento ético-teológico sobre o tradicionalismo. A obra vem organizada em quatro partes, cada qual composta de dois capítulos. Na Introdução (p. 7-20), o autor justifica a relevância desta temática: “o estudo sobre o tradicionalismo é escasso em nosso ambiente acadêmico da ciência da religião e da teologia. O foco que prevaleceu nas ciências dedicadas à religião nas últimas décadas foi sobre os grupos e as tendências pentecostais com seus fundamentalismos e teologias do poder de Deus, enquanto a teologia concentrou-se nas temáticas sociais clássicas, bem como em novas temáticas relacionadas aos sujeitos excluídos. O tradicionalismo foi um antagonista tão real quanto oculto dessas abordagens e consolidou seu percurso como tendência cada vez mais hegemônica no catolicismo, ao menos nas instâncias dirigentes da Igreja. Mas também avançou como tendência entre os muitos pentecostalismos, na medida em que se aproximavam do poder político, primeiro nas bancadas legislativas e, mais recentemente, nos postos executivos. Talvez os estudos de religião tenham comungado do pressuposto moderno que acreditou ter superado historicamente as formas de pensamento conservador, ao menos nas suas expressões mais sectárias e intolerantes” (p. 15).
A primeira parte: O tradicionalismo e os tradicionalistas “faz uma aproximação da temática, do ponto de vista empírico e conceitual. Visa mostrar que o tradicionalismo persiste e cresce em diferentes frentes e expressões a partir de um imaginário comum” (p. 19). No primeiro capítulo: Fisionomia e dinâmica do tradicionalismo católico (p. 23-50) busca-se definir e caracterizar o tradicionalismo descrevendo de modo tipificado o comportamento desta tendência católica. A presença do tradicionalismo católico mostra que eles ganharam força política, pastoral, moral e litúrgica dentro da Igreja e crescente visibilidade nas redes sociais (cf. p. 25-28).
Sendo os tradicionalistas - grupos mais intelectualizados ou mais militantes, mais institucionalizados ou mais espontâneos, porém todos dispostos a enfrentar aquilo que julgam ser um desvio doutrinal e a atacar os sujeitos divulgadores dos erros como perigosos para serem expurgados da Igreja, o autor destaca que “os católicos tradicionalistas e os grupos políticos de ultradireita se afinaram em torno de pontos comuns ou em posturas de fundo, propiciando cenas políticas peculiares, compostas por sujeitos e universos valorativos em princípios distintos. De fato, uma espécie de ecumenismo tradicionalista agrega, sem maiores problemas, distintas confessionalidades, bem como distintas opções político-partidárias, que relativizam as diferenças históricas, ideológicas e teológicas em função de uma estratégia comum assumida como urgência para o país ou para o Ocidente” (p. 27).
João Décio Passos elenca as razões/fatores da visibilidade dos grupos tradicionalistas: “a visibilização promovida pelas mídias que operam em tempo real e tornam os fatos onipresentes; o pontificado do Papa Francisco que distingue de modo mais nítido, com seu projeto, os prós e os contra, ou seja, os reformadores e os tradicionais; e a ascensão política da ultradireita pelo mundo afora que se afina politicamente com essa tendência e, direta ou indiretamente, a exibe socialmente como apoio religioso” (p. 28).
Num segundo momento o autor pergunta quem são e onde estão os tradicionalistas (cf. p. 37-50). Destaca que essa pergunta não obtém uma resposta simples, ao contrário, exige observações mais cuidadosas e o conhecimento daquilo que, de fato, os constitui como segmento católico do passado e do presente. Quanto as definições, esclarece que é preciso distinguir o tradicionalismo ao menos de dois conceitos próximos: o primeiro diz respeito à escola filosófica organizada na França do século XVIII e XIX, denominada tradicionalismo, que mereceu, inclusive, a condenação de papas – Mirari vos (1832), Singulari nos (1834) e Pascendi (1907) por afirmarem a revelação como única fonte da verdade e, por conseguinte, negarem a possibilidade de acesso à verdade por meio da razão. A segunda distinção diz respeito à própria noção de tradição, dado cultural e religioso inerente aos processos de construção social das identidades religiosas e que adquire um lugar central no cristianismo. A noção de tradição (traditio) como transmissão dos conteúdos da fé nos diferentes tempos e nos espaços, pelos seguidores de Jesus Cristo, indica precisamente o contrário do tradicionalismo, na medida em que entende ser ela um processo de transmissão do passado no presente e, portanto, de discernimento circular entre as duas temporalidades, o que nega as dinâmicas da conservação intacta que caracterizam os diversos tradicionalismos.
Outros conceitos podem ser tomados como sinônimos pela proximidade da ideia que designam como: o conservadorismo (p. 40), o integrismo (p. 40-41), o fundamentalismo (p. 41-42).
Quanto ao perfil tradicionalista (p. 42-45) salienta que eles “têm nomes variados, na medida em que se organizam em grupos de diferentes status eclesiais (grupo de direito pontifício, grupos de direito diocesano, grupos estruturados em comunidades, movimentos inseridos nas paróquias e comunidades católicas) e em várias frentes feitas de adeptos – clérigos e leigos – inseridos no interior da Igreja e participantes de suas rotinas pastorais. São grupos, nomenclaturas e frentes variadas, que comungam de uma postura comum nem sempre visível nos discursos e nas práticas, porém definida como causa substancial (que está por baixo) e, em certas conjunturas, como bandeira comum de lutas. A referência a um passado, concretamente à visão e prática da cristandade, constitui o denominador comum” (p. 42). Eles são presença explícita, presença implícita e presença organizada (cf. p. 43). Apresentam-se também como novas organizações, sobretudo nas redes sociais (p. 44). Têm posturas e frentes comuns (p. 44-45) e estratégias comuns (p. 47-49).
No segundo capítulo A origem e o começo do tradicionalismo (p. 51-79) o autor distingue a origem e o começo do tradicionalismo. O começo reclama pela história, enquanto a origem pede a exposição das razões e das ideias. Portanto, o começo do tradicionalismo inscrito como movimento histórico, teórico e religioso tem contexto e data. Como todo movimento conservador, foi uma ideologia reativa ao processo de modernização (cf. p. 54-58). O autor descreve o tradicionalismo como escola de pensamento surgida no século XVIII na França e logo condenado pelos papas (p. 58-59) e o tradicionalismo como movimento amplo que avança no catolicismo como reação ao modernismo e que conta com a formulação oficial dos papas que haviam condenado aquele movimento localizado (p. 59-62). As expressões do tradicionalismo católico se referenciam direta ou indiretamente em algumas fontes canônicas adotadas como autoridade de fé para fundamentar e justificar suas posturas e como chaves de leitura para interpretar o mundo, a Igreja e a si próprios, sendo possível localizar três aglutinações de fontes acolhidas e utilizadas pelos tradicionalistas, com diferentes formas de selecionar e aplicar as mesmas, a depender da identidade e da linhagem de cada qual:
a) Concílios modernos;
b) documentos papais;
c) o sistema escolástico (cf. p. 62-70).
Trata-se de duas racionalidades em confronto, uma centrada na objetividade irrefutável da revelação e outra, na historicidade da natureza, das instituições e das ciências (cf. p. 70-71). O tradicionalismo se institui em sua dogmática fundamental como afirmação da racionalidade clássica que nega a moderna em plena construção. Trata-se de um sistema de matriz escolástica que se estrutura e opera a partir de uma cosmologia teocêntrica, de uma filosofia da história, de uma epistemologia essencialista, de uma sociologia cristã, de uma antropologia pessimista, de uma moral autoritária e de uma devoção espiritualista. Esse sistema pode ser definido e descrito como imaginário (na medida em que oferece uma imagem geral da realidade), como dogmática (por se tornar um sistema normativo exclusivista) ou, ainda, como esquema mental (desde que ofereça um mapa conceitual que orienta os comportamentos) (cf. p. 70-79).
No terceiro capítulo O Vaticano II: divisor de águas (p. 83-100) destaca-se que o Vaticano II foi o divisor definitivo de águas entre uma consciência cristã centrada numa epistemologia essencialista que dispensa a história e outra, que incorpora a historicidade como dinâmica que interpreta a fé e sua transmissão. Esse evento reposicionou a Igreja perante o processo de transformação histórica, abriu uma nova era eclesial que nega o tradicionalismo como hermenêutica da histórica e como modelo de vida eclesial. Se a rotina eclesial e eclesiástica decorrente do Vaticano I criara uma cultura do permanente; uma espécie de eclesiologia da “Igreja concluída” (fim da história) a quem restava afirmar o passado e aguardar a vinda escatológica do Cristo glorioso; uma gestão centralizada do corpo eclesial pelo bispo universal de Roma, não cabendo qualquer decisão não prevista canonicamente para os bispos localizados em suas dioceses, sucursais da Cúria Romana e concretização local da Igreja universal dirigida pelo Pontífice. Nessa “Igreja concluída” bastava a voz e a decisão do papa para decidir e gerir o conjunto por meio de seus atos e de sua Cúria. Muitos acreditavam e defendiam que a era dos Concílios havia sido superada (cf. p. 84-87), o Vaticano II foi um evento reformador exótico para a tradição consolidada do Vaticano I; um cavalo de Troia que introduziu dentro da Igreja o propósito da renovação do que era por natureza “irrenovável”. A ordem eclesial estável e fundada nas referências eclesiais dormira legítima e acordara obsoleta, dormira tradicional e acordara tradicionalista (cf. p. 87-89). Embora o Vaticano II tenha decretado o fim do tradicionalismo, ele subsiste de modos variados dentro da Igreja e tem crescido como tendência cada vez mais dominante, amparadas por fontes e estruturas eclesiais e eclesiásticas” (cf. 89-96). “O tradicionalismo cultivado dentro da Igreja na era pós-conciliar subsiste em expressões disfarçadas e em oposições frontais ao processo de aggiornamento sempre em curso” (p. 100), sendo assim, possível, constatarmos dois projetos eclesiais em curso: uma Igreja autorreferenciada e uma Igreja em saída (cf. p. 97-99).
O quarto capítulo, A construção de identidades e linhagens tradicionalistas (p. 101-123), busca descrever didaticamente a partir das categorias: fontes, inimigos, sujeitos, estratégias e institucionalização - os três tradicionalismos hoje existentes e operantes: o tradicionalismo de resistência constitui um núcleo duro e radical que se constrói como identidade de resistência em relação às renovações que vão ocorrendo dentro da Igreja Católica até formar uma instituição autônoma, confessadamente distinta do catolicismo. (cf. p. 104-109). O tradicionalismo de legitimidade vai sendo construído dentro da própria Igreja e, aí alojado, avança e se expande, tornando-se cada vez mais legítimo. A legitimidade designa o consenso social e estabelecido sobre o lugar oficial ocupado por essa tendência no corpo eclesial, precisamente nos segmentos hierárquicos e nas posições institucionais dos escalões mais altos aos mais baixos (cf. p. 109-115). O tradicionalismo emergente se encontra em plena construção presente nas mídias, manifestando nítida tendência por fontes produzidas pelo tradicionalismo de resistência; conteúdos tradicionalistas de natureza dogmática e política são veiculados como consenso de fé e com autoridade magistral da parte dos divulgadores espalhados pelos sites e pelas redes sociais. Ancorando-se no jogo mercadológico do número de seguidores e não poupando estratégias de comunicação fragmentadas que reproduzem quase sempre informações rápidas, afirmações categóricas, frases de efeito e recortes textuais retirados de autores e documentos. (cf. p. 115-121). Em cada uma dessas linhagens prevalece a identidade comum: autodefinição a partir de referências do passado e reticências às tendências presentes. Elas têm no centro dois mundos distintos: o catolicismo como epicentro do qual emanam as afirmações tradicionalistas, que reivindica sempre a postura do verdadeiro catolicismo em oposição aos falsos catolicismos; o mundo moderno com suas crises de valores morais e espirituais que ameaçam a vida humana (cf. p. 121-123). O tradicionalismo “se firmou a partir de três dinâmicas de conservação: uma primeira de caráter dogmático, a convicção sobre as causas e as soluções religiosas para as crises; uma segunda pragmática, a adaptação ao regime capitalista; e uma terceira estratégica, a afinidade aos regimes autoritários. A conservação da hermenêutica religiosa esbarrou com o dado científico, sendo que as ciências se tornavam sempre mais hegemônicas em seus resultados e métodos. A adaptação política abriu mão, ao menos de imediato, dos regimes monárquicos pré-modernos, assumindo as versões autoritárias de governo como coerentes com o projeto de preservação de uma ordem cristã, batizando-a como legítima, em nome do Deus todo-poderoso” (p. 183).
No quinto capítulo Tradicionalismo: afinidades políticas (p. 127-155) mostra-se que as afinidades entre tradicionalismo católico e ideologias e governos de direita são evidentes tanto no passado como no presente. Os tradicionalistas não atuam sozinhos nesse momento histórico, mas cada vez mais afinados com projetos e governos de direita que emergem pelo planeta. A religião se apresenta como um dado importante para na fundamentação, na motivação ou na justificação de configurações históricas e, por conseguinte, de regimes políticos. A natureza absoluta da religião a faz funcionar como base dos sistemas políticos, aparato do qual retiram ideias, imagens e regras para edificarem como naturais e, quando não naturais, casos de regimes de exceção, como necessários para o bem das pessoas. Eis o fato político regular: a aliança regular entre posturas religiosas tradicionalistas e regimes políticos de viés autoritário (cf. p. 127-129). Duas convicções fundamentam e perpassam as posturas tradicionalistas: a certeza da crise moderna e a solução religiosa para as mesmas (cf. p. 129-136). Os tradicionalistas são politicamente reativos, trabalham com pautas negativas que visam demonstrar os equívocos dos tempos presentes e, por isso, se afirmam como negação de mudanças, por acreditarem na herança histórica de um passado homogêneo que se perpetua no presente. A negação atual em plena construção desenha uma grande frente de batalha do Ocidente contra os que ameaçam sua unidade e estabilidade: a antimodernidade, o antissocialismo e a anti-igualdade (cf. p. 136-140). Assim o tradicionalismo, com suas teologias de estabilidade, tece afinidades com o conservadorismo político que se apresenta como solução para as crises modernas. Algumas palavras-chaves indicam essa confluência que vai tecendo conjunturas políticas e que se retroalimentam com as visões religiosas tradicionalistas: ordem natural, unidade, estabilidade, hierarquia, centralização, autoridade, força, disciplina e ritualismo. Desta forma, os passos a seguir mapeiam uma sequência da construção das afinidades entre religião e ordem secular:
a) a afirmação do caos;
b) a legitimação da realidade;
c) autoridade religiosa do poder autoritário;
d) a ordem e a autoridade (cf. p. 140-148).
Uma teologia do Deus todo-poderoso fundamenta poderes políticos de direita (cf. p. 148-151), por isso, a volta ao passado tem se apresentado como solução para as crises atuais: o Deus todo- poderoso vencerá todos os inimigos que ameaçam a soberania dos Estados, a autonomia do Ocidente, a civilização cristã, por meio de líderes poderosos (cf. p. 151-155).
No sexto capítulo Papa Francisco e as direitas emergentes (p. 157-180), destaca-se que o pontificado de Francisco entra para a história como um projeto reformador e exercido em meio a agressivas oposições advindas de setores conservadores da sociedade mundial. São antipatias e estratégias internas e externas à Igreja que se cruzam, em última análise, numa confluência econômica, a partir de onde emerge uma nova (ou velha) direita política mundial com objetivos e estratégias comuns (cf. p. 157-159). Francisco instaurou uma nova variável política no cenário global, por seu viés pastoral, nitidamente posicionado em favor dos excluídos e crítico não somente aos rumos do capitalismo atual, mas a sua lógica interna (cf. p. 159-165). Em termos weberianos poder-se-á falar em afinidade eletiva entre as duas frentes, a configuração religiosa e a configuração político-econômica (cf. p. 165-167). Daí surge às alianças e afinidades: milionários, nacionalistas, ultraliberais, fundamentalistas, tradicionalistas, moralistas, ritualistas. Homens do capital e cardeais da Cúria romana. Eis a soma de perfis, projetos e sujeitos que formam, por ora, o front contra Francisco e que visam formar uma geração de cabeças benfeitas para preservar a bolha econômica, política, cultural e religiosa do velho Ocidente em crise (cf. p. 167-174). Por isso, Francisco, tido como inimigo do império capital e dos burocratas eclesiais, é desqualificado como heterodoxo, incompetente em teologia, herético, comunista (cf. p. 174-180).
No sétimo capítulo, mostram-se quais são os limites do tradicionalismo (p. 183-199). A história dos tradicionalismos é marcada por crises e fracassos em seus projetos e configurações, embora se apresentem sempre como verdade estável e solução coerente e segura (cf. p. 183-185). Os limites históricos (p. 193-195), epistemológicos (p. 194-195), ético-antropológicos (p. 195-196), políticos (p. 196-197), teológicos (p. 197-198) do tradicionalismo “advêm de seu próprio propósito e projeto que afirmam a veracidade de um modelo histórico a ser adotado, modelo paradoxalmente compreendido como perene e, portanto, como supra-histórico. Essa visão de fundo essencialista tem raízes bem fincadas na tradição platônica assimilada pelo cristianismo, ou seja, na ideia eterna: por si mesma anterior, superior e posterior às contingências históricas. A história, por sua vez intrinsecamente precária, há que buscar nas ideias a sua razão, sentido e direção. Uma vez cristianizadas, as ideias têm nomes próprios e itinerários salvíficos estabelecidos pela revelação de Deus realizada em Jesus Cristo e hoje dispensada pela Igreja Católica. Esse pressuposto filosófico-teológico fornece a matéria de uma filosofia da história que isola e coagula a verdade e a salvação em um modelo único de teologia-Igreja-sociedade, construído na longa temporalidade da cristandade medieval e canonizado em formas dogmáticas e jurídicas nos Concílios de Trento e Vaticano I. Esse modelo concluído de filosofia, de teologia e de Igreja só pode ser reproduzido, jamais refeito, sob pena de pecar contra a própria revelação de Deus” (p. 198-199).
No oitavo capítulo encontramos os discernimentos a serem feitos diante do tradicionalismo (p. 201- 225). Os tradicionalistas habitam a Igreja de ontem e de hoje e desafiam toda a comunidade eclesial a discernir e a relacionar-se na liberdade e na caridade. Assim sendo, os discernimentos feitos situam-se nas perspectivas hermenêuticas, histórica, social e teológica. No fundo de todas elas, existe uma leitura da história que afirma valorativamente o dinamismo real do tempo que passa, a consciência necessária desse dinamismo e a necessidade de considerar o presente como realidade a ser encarada como tempo da salvação e como ação livre e responsável dos sujeitos políticos e eclesiais (cf. p. 201-203):
1) A ilusão da permanência do passado: Os tradicionalistas são estrategistas do presente; constroem suas representações e práticas do passado a partir do presente e, no fundo, constroem o próprio passado de que afirmam ser preservadores. A ilusão de um modelo de vida verdadeiro – de sociedade, de política, de cultura e de religião – que encarna o definitivo fundamenta o tradicionalismo e demarca suas rejeições ao tempo presente, frágil e perigoso. Uma segunda ilusão sustenta ainda a seguinte postura: a de que são meros repetidores e não construtores do que julgam advir concluído do passado como padrão sagrado e norma perene para todos os tempos (cf. p. 203-207);
2) O carisma cristão e a história que passa: o carisma cristão permanece vivo e constitui, evidentemente, a sua única fonte. Fora dessa fonte não há justificativa para as estruturas, os papéis, as normas e as tradições da Igreja. O Evangelho é sempre a fonte renovadora de todas as estruturas historicamente construídas, fora dele não há legitimidade para a instituição. Não se trata de negar a organização institucional. Ela é necessária para a vida humana em qualquer tempo e lugar. Além disso, ocorre como meio de gerir o dom fundante no tempo e no espaço, ocorre espontaneamente, independente do modelo organizacional que venha a adotar. A história das organizações eclesiais cristãs e das demais religiões demonstra essa factualidade histórica e política. A consciência cristã exige que se volte sem cessar para o seu fundamento, para dele retirar elementos para a vida pessoal e comunitária. A Igreja é a comunidade dos seguidores de Jesus Cristo e, dessa fé primeira, retira todos os parâmetros para posicionar-se dentro da história e aí se organizar para melhor servir. O tradicionalismo é a fixação no tempo do meio: não volta ao carisma original nem se abre ao presente; adota um modelo histórico como fixo e eterno por encarnar em si mesmo a verdade, de forma que o retorno ao carisma original não constitui sua dinâmica, e é até mesmo considerado anárquico, quando não herético (cf. p. 207-212);
3) Os sinais dos tempos: A noção e uso dos sinais dos tempos indicam o modo de transmitir, atualizar e vivenciar os conteúdos da fé que permanecem com sua substância, em cada tempo e lugar. O Vaticano II rompeu, desse modo, com o conforto da doutrina, da norma moral e da definição canônica, colocando no centro da tradição, do magistério e da teologia o caminho do discernimento do tempo presente que exige, ao mesmo tempo, discernimento do passado: das fontes da fé, da tradição e da doutrina (cf. p. 212-217);
4) A doutrina situada entre o passado e o presente: o tradicionalismo identifica como uma expressão uníssona, interpretação-formulação-doutrina-revelação, verdade única que se funda diretamente em Deus. Nesse sentido, são fundamentalistas, por fixarem-se em uma formulação histórica como expressão direta da revelação e da verdade absoluta. Não são irracionais, mas, ao contrário, se baseiam em um tipo de racionalidade que dispensa a perspectiva da história, como parâmetro que exige distinguir passado e presente em todas as construções humanas e assumir o compromisso de transmitir de modo renovado a verdade no presente. No entanto, paradoxalmente adotam um modelo histórico datado como expressão coerente e definitiva da verdade eterna (cf. p. 217-225).
A conclusão é provisória (p. 227-234): “perante as propostas filosóficas e religiosas que proclamam a posse do definitivo, o cristianismo afirma a posse do provisório” (p. 227). O “cristianismo aguarda o definitivo no provisório, no devir dramático do tempo, na liberdade das escolhas que podem errar, no desafio da construção permanente” (p. 229). Assim: “Na fé cristã as conclusões são todas provisórias; somente o Reino de Deus é definitivo, por brotar de sua própria doação de vida que se distende no universo e na história, no tempo de ontem, de hoje e de amanhã. O Reino abre todas as coisas para um fim que fecunda o presente com seu germe transformador e faz da dinâmica da história contínua autossuperação. O Espírito que renova todas as coisas e sopra onde quer liberta-nos dos fechamentos no tempo e no espaço; transforma-nos em itinerantes permanentes na busca do novo. O poder renovador do Espírito desautoriza todas as concentrações teocráticas, exercidas em nome de quem quer que seja, de hierarquias eclesiais ou políticas. Desautoriza todas as concentrações sagradas em instituições, leis e personagens, e exige discernimentos a cada instante, munido da memória do passado e da esperança de futuro” (p. 230). “Considerar que o tempo é superior ao espaço significa abrir-se para o futuro e relativizar os domínios espaciais, as configurações políticas. Dar prioridade ao tempo significa encarar os limites sem absolutizações” (p. 231).
Na era dos “re”: reformulações, remisturas, reciclagens, revivalismos, regressos, recuperações, remakes, reedições, retrospectivas, de volta aos fundamentos, de nostalgia de um passado que não existe mais, mas que exerce uma notável atração em tempos de desorientação como os nossos – as reflexões oferecidas neste livro por João Décio Passos foram feitas com muita lucidez e discernimento. Sabemos que discernir implica penetrar a realidade na sua radical ambiguidade e distinguir nela os laivos de positividade e negatividade. E, ao ponderá-los, perceber a diferença de proporção entre os dois lados. E a lucidez consiste precisamente em captar esse jogo e ir escolhendo as realidades, cuja parte luminosa se sobressai em relação ao lado obscuro.
Acertadamente temos nestas páginas um “exercício de análise sócio-histórica e de discernimento ético-teológico sobre o fenômeno” (p. 16) do tradicionalismo de “viés católico” (p. 17), “exposto do ponto de vista de suas concepções históricas e sociais, de suas percepções e práticas, de suas funções sociais e políticas, de seus limites e discernimentos” (p. 201).
A seriedade, o rigor da análise, a objetividade e a clareza desta obra representam um convite para a superação de uma visão retrospectiva que coloca a segurança nas respostas do passado, na segurança das normas e regras para uma visão prospectiva que guarda a serenidade e a capacidade de discernimento habitada pela virtude de uma esperança ativa.
Em tempos de crise como o que estamos vivenciando, com todas as advertências trazidas pela pandemia do coronavírus - somos desafiados à invenção, sonho, criatividade, utopia e a fazer nossas pegadas no chão da história - evitando o plágio agarrado a velhas certezas de um passado sem retorno.
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A força do passado na fraqueza do presente. O tradicionalismo e suas expressões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU