24 Janeiro 2018
O neotradicionalismo católico atual tem muito pouco em comum com o conservadorismo católico teológico, institucional e eclesiástico do século XX.
O artigo é de Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Villanova University, em artigo publicado por Commonweal, publicado por La Croix International, 22-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
As clivagens entre diferentes visões de mundo religiosas dentro do catolicismo ocidental estão atualmente sendo redefinidas em torno das chamadas "questões da vida". Vemos entre os liberais o ressurgimento do argumento da "túnica sem costura" (em inglês, seamless garment) do Cardeal Bernardin, enquanto os conservadores insistem que o aborto é a única questão moral decisiva. Esta fissura oculta uma reestruturação maior e mais profunda de toda a paisagem ideológica do catolicismo, mas mais particularmente do lado conservador.
Por um lado, houve uma inversão de papéis entre os católicos liberais e progressistas e os tradicionalistas e conservadores. (Existem também diferenças significativas entre liberais e progressistas, bem como entre tradicionalistas e conservadores; mas isto é assunto para outro artigo).
A cultura católica liberal-progressista, na mídia e no meio acadêmico, é percebida (e em grande medida percebe a si própria) como o novo status quo, o establishment e o gatekeeper. Quando os que se inclinam a esse lado observam da janela o que está acontecendo nas ruas, tendem a ver apenas uma revolta, quando na verdade pode estar acontecendo uma revolução.
Isso explica a relutância da cultura católica liberal-progressista de se empenhar teologicamente com o movimento católico neotradicionalista e a tentação da anterior a descartar a última. Essa tentação pode ser explicada pelo fato de que o antigo conservadorismo católico, de teologia romana, não existe mais. O neotradicionalismo católico atual tem muito pouco em comum com o conservadorismo católico teológico, institucional e eclesiástico do século XX.
Não há nenhum Cardeal Ottaviani ou Cardeal Ratzinger entre os pensadores católicos antiliberais e neotradicionalistas atuais. A era dos gigantes no pensamento teológico católico acabou de ambos os lados, porque a globalização da teologia católica nivelou os perfis no "quem é quem" da tradição intelectual contemporânea. Teólogos franceses e alemães já não dominam o debate católico. E, mais importante, está ocorrendo uma metamorfose dentro da revanche intelectual ocidental católica: há um movimento para reconquistar o território perdido. Os liberais não devem olhar para isto como um momento efêmero que vai ser reabsorvido pelo mainstream, porque o mainstream já não existe mais.
Uma maneira simples de decifrar o rosto da revanche católica atual é olhar para o mapa da oposição ao Papa Francisco. Como já escrevi, há três tipos principais de oposição ao presente pontificado. Há uma oposição teológica nostálgica do paradigma de João Paulo II e Bento XVI; há uma oposição institucional que está tentando defender o status quo eclesiástico e clerical; e, por fim, há uma oposição político-social, que se preocupa com a sustentabilidade político-econômica de um pontificado que está radicalmente do lado dos pobres.
Mas se olharmos para o centro cultural e político da oposição a Francisco no catolicismo global, que é os Estados Unidos, há algumas diferentes correntes que precisamos experimentar e identificar para compreender essa virada católica ao conservadorismo.
A primeira, cronologicamente, começa por uma reação ao Vaticano II e principalmente à recepção antecipada da teologia do Concílio durante o papado de João Paulo II e do Cardeal Joseph Ratzinger-Bento XVI. É o projeto de teologia pós-liberal, como declarou recentemente R.R. Reno, editor da revista First Things.
"João Paulo II e Joseph Ratzinger redirecionaram o catolicismo, colocando-o num caminho com certas semelhanças com o pós-liberalismo de Yale", escreveu Reno.
"Enquanto isso, a universidade moderna tornou-se pós-moderna, colocando padrões objetivos de verdade em questão. A teologia liberal misturou-se ao empreendedorismo autorreferencial acadêmico chamado 'estudos religiosos'. O público da teologia liberal murchou."
Uma figura-chave no nascimento dessa corrente pós-liberal foi George Lindbeck, um estadunidense que é um teólogo luterano e foi observador ecumênico no Concílio Vaticano II e morreu no início deste mês. Esta corrente pós-liberal foi ecumênica e teve um impacto profundo no catolicismo estadunidense e de língua inglesa.
A segunda está ligada à primeira, mas mais na direção de uma ‘evangelicalização’ do catolicismo. Não sem um animus anti-intelectual, esta corrente conta com intelectuais populares entre os jovens católicos militantes, como George Weigel e o bispo Robert Barron. Essas figuras constantemente advertem sobre os perigos do intelectualismo liberal para uma fé cristã que é muito aberta à modernidade. A ideia é libertar o catolicismo da complexidade absoluta e dos paradoxos da teologia conciliar, para redescobrir a beleza e a simplicidade da verdade católica, muitas vezes em tons triunfalistas.
A voz de Jacques Maritain, em seu livro de 1966, The Peasant of the Garonne – arquiteturas teológicas complicadas não podem substituir o chamado para lutar contra a crise da fé cristã na modernidade – encontra eco nesta corrente de cultura católica tradicionalista e conservadora atual. O movimento neotradicionalista pela "reforma da reforma litúrgica" é, em sua própria maneira, parte dessa ‘evangelicalização’ do catolicismo, e não apenas uma espécie de nostalgia do catolicismo do século XIX.
A terceira e a quarta correntes são mais recentes e provam a radicalização do tradicionalismo católico. Há a insurgência católica anti-institutionalista, começando com a convicção de que a maior parte do establishment e da liderança católica atual – clero, intelectuais e políticos – demonstraram uma fraqueza fundamental e uma inabilidade de responder aos desafios colocados diante da Igreja – a secularização, as guerras culturais, o Islã, os escândalos de abuso sexual, e assim por diante.
É uma cultura católica tradicionalista que já não é mais realmente conservadora. Pelo contrário, é uma insurgência. A fim de manter o catolicismo como antes, o establishment eclesiástico atual deve ser completamente destruído. É a Igreja da "opção Beneditina” e das outras tantas opções. Sobre isso, lembramos as palavras do Príncipe de Salina, em O Leopardo, romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.
A enérgica campanha contra o Papa Francisco – que começou bem no início do seu pontificado, em 2013, e não com Amoris Laetitia, em 2016 – faz parte dessa estratégia. O objetivo é se livrar deste establishment eclesiástico visto como comprometido com o liberalismo e com a expressão da teologia conciliar e depois esperar que os novos recrutas que atualmente estão no seminário substituam o clero formado na Igreja pré-João Paulo II.
Parte dessa insurgência é vista na onda de novas ordens contemplativas que atraem millennials e tem o efeito de reequilibrar o ativismo social pós-Vaticano II das ordens religiosas, algumas das quais estão se deparando com o risco de extinção antes do fim deste século (pelo menos no norte do hemisfério ocidental).
A quarta corrente dessa virada conservadora é uma crítica católica da globalização como globalismo, que assume a forma de anti-internacionalismo e, às vezes, até de etnonacionalismo e nativismo.
O catolicismo do século XX, após duas guerras mundiais, era profundamente internacionalista, porque o internacionalismo estava entre as sobras que se podiam aproveitar do Romanismo, do papismo e do antinacionalismo do século XIX. O antigo conservadorismo católico era internacionalista e ultramontanista. Abarcava não apenas Roma locuta, causa soluta, mas também a ideia universalista da autoridade moral superior da Igreja Católica nas questões mundiais.
Mas esta nova revanche católica do século XXI associa o internacionalismo católico com uma cumplicidade ingênua ou, pior, intencional com a globalização da economia sem coração, com a secularização, a indiferença em relação às outras religiões e com o otimismo típico do Vaticano II. Esta nova cultura tradicionalista tem um sentido de supremacia cultural da ortodoxia católica do hemisfério norte ocidental, em oposição às formas de catolicismo europeias ou latino-americanas, e, claro, à forma a que o Papa Francisco se afilia.
Esta breve taxonomia das diferentes correntes dentro do novo tradicionalismo católico não é exaustiva e poderia prosseguir ainda mais. O objetivo não é identificar outras correntes com precisão microscópica, mas entender o que esse fenômeno significa.
Há paralelos evidentes entre essa metamorfose da cultura religiosa conservadora da Igreja Católica e a trajetória do conservadorismo político. Em um livro publicado em 2012 (quatro anos antes de Trump conquistar a Casa Branca), Geoffrey Kabaservice analisou as mudanças na natureza do Partido Republicano dos Estados Unidos nos últimos 50 anos – a virada do conservadorismo da moderação ao extremismo.
Acredito que há paralelos interessantes entre o colapso do moderacionismo dentro da política conservadora (e não apenas nos Estados Unidos) e o fim do antigo conservadorismo católico institucional. Essa virada explica a radicalização da oposição ao Papa Francisca e sua classificação como Papa liberal – algo necessário se o projeto de longo prazo é um pós-catolicismo liberal.
Os católicos do Vaticano II têm que levar este fenômeno a sério e não se iludir pensando que esta virada neotradicionalista representa apenas uma pequena minoria em regiões específicas do mundo, que vai desaparecer ou continuar marginal e ineficaz. Sim, é uma minoria que é geograficamente isolada. Mas não acho que permanecerá tão marginal nem que desaparecerá.
O catolicismo global é cheio de incógnitas e surpresas. As possibilidades abertas pela "Igreja Mundial" do Concílio Vaticano II podem ser usadas de diferentes maneiras da interpretação estabelecida no início do período pós-Vaticano II, e são às vezes usadas contra a teologia do concílio.
Não se sabe bem se esta insurgência tradicionalista intracatólica trará um catolicismo permanentemente dividido ou uma inversão total da teologia conciliar e um retorno à Igreja pré-Vaticano II. O último cenário é improvável. Não acredito que é intelectual, teológica ou espiritualmente sustentável que a Igreja Católica esteja em oposição ao Concílio Vaticano II ou rejeite a teologia do concílio. Não apenas porque o Vaticano II não é o que pensam os extremistas contra o concílio, mas também porque nem todos os católicos neotradicionalistas aceitam o extremismo ideológico daqueles que rejeitam não apenas o espírito do Concílio Vaticano II, mas também seus documentos.
Este momento delicado na recepção do Vaticano II coincide com duas correntes diferentes e, em certa medida, contraditórias. A mudança de paradigma que o Papa Francisco está trazendo está em rota de colisão não só com o sentimento anti-Vaticano II, mas também com algo que eu chamaria de agnosticismo conciliar dos millenials católicos e de seus mentores, aqueles cuja visão sobre o potencial do Concílio Vaticano II de síntese teológica é muito menos otimista.
Este momento é parte da estrada já sinuosa da recepção dos concílios ecumênicos. A julgar pelo que aconteceu com a recepção do Concílio de Trento, pode-se dizer que a recepção do Concílio Vaticano II apenas começou. O que quer que pensem os católicos do Vaticano II sobre a coerência entre o concílio e a Igreja pós-conciliar e sobre a traição do Concílio Vaticano II pela Igreja institucional, é difícil negar que a teologia conciliar tornou-se o establishment cultural e teológica católico.
Agora é hora de levar em conta a insurgência neotradicionalista contra esse establishment e imaginar para onde vamos a partir daqui.
Os anos de 1950 e 1850 não voltam, mas também não são os anos 60 ou 70.
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Do status quo à insurgência: catolicismo tradicionalista versus catolicismo conciliar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU