10 Setembro 2020
"As reformas pretendidas por Paulo Guedes, em especial a trabalhista, configuram uma inovação retrógrada", escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em artigo publicado por CartaCapital, 09-09-2020.
A Folha de S.Paulo informa: “Governo quer que empresa tenha até 50% dos empregados com contrato por hora. O projeto do governo para afrouxar regras de contratação de trabalhadores prevê que até metade dos empregados de empresas privadas seja paga por hora trabalhada, em vez de salário mensal. Essa modalidade de contratação deve ser a base da proposta da carteira verde e amarela. O governo diz que o objetivo é incentivar a criação de empregos”.
São contratos de trabalho sem direitos sociais. Trata-se da formalização da informalidade. As reformas pretendidas por Paulo Guedes configuram uma inovação retrógrada. Digo retrógrada porque tal empreendimento de política econômica promove o retorno às relações capital-trabalho que prevaleciam na Era Mercantil, antes da Revolução Industrial ocorrida no crepúsculo do século XVIII.
O sistema putting-out tornou-se bem estabelecido no comércio europeu de têxteis, especialmente na Inglaterra, durante os séculos XVII e XVIII. Ao fornecer a matéria bruta ou semiacabada aos produtores diretos e vender produtos acabados, o comerciante organizava várias etapas de produção realizadas por trabalhadores com habilidades distintas, como fiação, tecelagem e tingimento. Tipicamente, o comerciante-capitalista mantinha a propriedade da matéria-prima ao organizar as fases de produção, embora os arranjos mantivessem a fachada das relações de troca entre artesãos independentes.
A atual etapa do desenvolvimento capitalista é marcada pela dissolução das relações salariais promovida pela conjugação entre o avanço tecnológico da Quarta Revolução Industrial e as novas formas assumidas pelas grandes empresas na era da globalização.
Já mencionei nesta coluna que o filósofo Franco ‘Bifo’ Berardi apontou para essa transmutação das relações de trabalho: “O Capital deixou de alugar a força de trabalho das pessoas, mas compra ‘pacotes de tempo’, separados de seus proprietários ocasionais e intercambiáveis. O tempo despersonalizado tornou-se o agente real do processo de valorização e o tempo despersonalizado não tem direitos, nem demandas. Apenas deve estar disponível ou indisponível, mas essa alternativa é meramente teórica porque o corpo físico, a despeito de desconsiderado juridicamente, ainda tem de se alimentar e pagar aluguel”.
Na era pós-fordista, como perscrutou Michel Foucault, o “poder enformador da sociedade”, vulgo capitalismo, redefiniu os indivíduos-sujeitos. Os valores da livre-concorrência ocuparam os espíritos para transformar todos e cada um em “empreendedores de si mesmos”, proprietários, sim, do seu “capital humano”, mas despossuídos de seu corpo e de sua mente.
Mesmo cultivado com os empenhos da educação e da formação profissional, o capital humano sofre forte desvalorização nos mercados de trabalho contaminados pela precarização e pelo empreendedorismo das plataformas, pela continuada perda da segurança outrora proporcionada pelos direitos sociais e econômicos. Não por acaso, a Gig Economy foi abalada pelas greves dos motoristas do Uber na Califórnia ou pela recente rebelião brasileira dos entregadores de comida, massacrados em seus direitos e seus rendimentos pelas manobras do “aplicativo”. Na outra ponta do espectro econômico, a rápida expansão do enriquecimento derivado da propriedade de ativos e não de seu emprego na produção de bens e serviços demonstra que a financeirização não é uma deformação desse regime de apropriação da renda e da riqueza, senão a expressão necessária de sua dinâmica contraditória.
Tais desencontros comoveram o economista Michael Spence, agraciado com o Prêmio Nobel: “Muitos concluíram que o mercado está desvinculado da realidade econômica. Mas os mercados acionários atuais podem estar em parte refletindo poderosas tendências subjacentes amplificadas pela ‘economia pandêmica’. Os preços das ações e os índices de mercado são medidas de criação de valor para os proprietários de capital, o que não é a mesma coisa que a criação de valor na economia de forma mais ampla, onde o trabalho e o capital tangível e intangível desempenham um papel”.
Spence desconsidera que o “trabalho e o capital tangível e intangível” estão submetidos à aceleração do tempo de produção e de circulação promovida pelos sistemas tecnológicos em movimento. Isso aproxima a produção “material” dos tempos frenéticos da finança, reduz a necessidade de trabalhadores e, ao mesmo tempo, agrava sua dependência e desproteção. Ao submetê-los ao salário por hora, o capitalismo contemporâneo atualiza o seu conceito: acrescentar valor com a desvalorização da mercadoria força de trabalho.
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Informalidade formalizada. Artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU