26 Agosto 2020
Imagine a vida de quem prega a paz coordenando mais de 100 missionários em um ambiente onde, em média, há um ataque armado a cada dois dias e que, na maioria das vezes, os alvos são inocentes, quase sempre cristãos. Cerca de 1500 pessoas já morreram, nos últimos três anos, em uma região da África onde um brasileiro católico insiste em levantar uma bandeira branca.
A reportagem é de Vinícius Assis, publicada por Rádio França Internacional - RFI, 25-08-2020.
Dom Luiz Fernando Lisboa, de 64 anos, é uma das poucas pessoas que têm tido coragem de falar com a imprensa internacional sobre o que tem acontecido em Cabo Delgado, no norte moçambicano, região que atualmente é considerada a mais perigosa em um dos países com mais brasileiros na África. Nascido em Valença, interior do Rio de Janeiro, ele vive há 19 anos em Moçambique.
Dom Luiz Fernando Lisboa (Foto: Vatican Media)
Recentemente, terroristas chegaram a tomar um porto, depois de ataques em Mocímboa da Praia. A ação levou o exército moçambicano a reagir para tentar recuperar o controle da região. O brasileiro fala com a propriedade de quem vive diretamente as consequências deste problema.
Na semana passada, o papa Francisco telefonou ao bispo brasileiro para falar sobre a situação no norte moçambicano. O sumo pontífice se dispôs a ajudar no que for necessário. “Ele disse que está acompanhando os acontecimentos na nossa província com grande preocupação e que está constantemente rezando por nós”, contou o Bispo de Pemba ao Vatican News. Ele lembrou que o Papa colocou Cabo Delgado no mapa do mundo quando rezou por esta região no Domingo de Páscoa durante a Bênção do Urbi et Orbi.
Dom Fernando disse ainda ter informado o Santo Padre sobre a situação da cidade portuária de Mocímboa da Praia, que foi ocupada por militantes jihadistas, e também do desaparecimento de duas religiosas.
“As duas são membros da Congregação Internacional das Irmãs de São José de Chambéry. O Papa prometeu rezar por elas”, acrescentou o bispo brasileiro.
Igreja atacada em Cabo Delgado (Foto: Associação Civil de Moçambique)
Em outubro de 2017, homens armados começaram os ataques na região. Um posto da polícia rodoviária foi um dos primeiros alvos. Depois, jihadistas partiram para as aldeias e vilas (como se referem aos centros das cidades). “Muitas vezes decepavam as cabeças, queimavam casas e comercio”, lembrou o brasileiro, destacando que em quase três anos já houve ataques terroristas em mais da metade dos 17 distritos de Cabo Delgado.
Moçambique tem altas taxas de analfabetismo, desigualdade e desnutrição infantil. Até o ano passado, analistas esperavam investimentos (US$100 bilhões até 2030) capazes de transformar o país no “Qatar africano”. Porém, o aumento da quantidade de ataques terroristas tem espalhado medo, aumentado o número de deslocados internos e deixado de lado a preocupação com o novo coronavírus, de acordo com o bispo que vive em uma região de gente humilde, apesar de ser rica em gás natural, produção de rubis da melhor qualidade, ouro e importante exportadora de madeira. Entre os problemas de Cabo Delgado está também a presença de traficantes (de marfim e heroína, por exemplo), mas o que vem derramando sangue e assustando a população são os terroristas.
De acordo com ACLED, sigla em inglês do Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos, desde 2017 houve 823 conflitos armados em Moçambique, sendo que 534 deles ocorreram em Cabo Delgado (396 diretamente contra civis). Durante este período, dos 1678 mortos em conflitos no país, 1496 foram na província onde o religioso brasileiro atua.
Aliás, a caminhada do incansável missionário foi longa até chegar onde está. Ainda criança, aos 9 anos, Dom Luiz se mudou de Valença e foi para Osasco, em São Paulo, onde passou a maior parte do tempo. Foi enviado para Moçambique em 2001, exatamente para fortalecer uma comunidade com um passado marcado por conflitos sangrentos e também para reconstruir uma igreja centenária, ocupada pelo governo durante a guerra civil no país e devolvida aos cristãos em ruínas após um acordo de paz.
Em 2013, foi nomeado pelo papa o sétimo bispo da Igreja Católica na diocese de Pemba, já em Moçambique, de acordo com a Rádio 9 de Julho que também contou sua história. Dom Luiz fernando relatou que, por uma série de motivos, a vida de um líder religioso nesta região não é fácil. É preciso, por exemplo, andar muitos quilômetros para ir a um encontro com a comunidade. “São 20, 40, 50 quilômetros. Tem que ter muita coragem mesmo para ser cristão e servir à Igreja”, contou o brasileiro sobre a vida longe da capital moçambicana, Maputo.
A entrevista foi interrompida pela ligação de um missionário descrevendo mais um ataque. Ao desligar o telefone, D. Luiz Fernando não quis, imediatamente, contar com detalhes o que tinha acontecido. “Aqui, a gente tem que tomar muito cuidado com as informações”, disse, deixando claro que precisava apurar melhor a situação para se limitar a dizer exatamente o que aconteceu, para não espalhar boatos. Mas acabou falando que mais uma casa de religiosos havia sido atacada.
Horas depois, terroristas que se dizem ligados ao grupo Estado Islâmico reivindicaram na internet a autoria da brutal ação na região, e divulgaram a foto de um tanque do exército moçambicano que os insurgentes roubaram.
Ele conta também que hoje em dia não é fácil circular em Cabo Delgado, região que foi muito castigada durante a sangrenta luta pela independência de Moçambique (1964-1974) e também durante a guerra civil, que começou logo depois (1977-1992). O bispo ressalta que não se pode comparar a guerra atual com o que houve no passado. “Se antes era uma guerra ideológica essa guerra aqui está matando pessoas inocentes que não sabem nem porque estão a morrer”, afirmou.
Atualmente, também há ataques nas estradas que têm como alvos carros particulares e vans — um meio de transporte muito popular em Moçambique, onde se chamam “chapas”. “A população começou a ter problemas com o ir e vir dentro da província”, lamenta o bispo. Ao se avistar uma blitz nunca se tem certeza se está a poucos metros do exército ou de terroristas, já que às vezes os insurgentes atuam com fardas e armas que roubaram de bases militares atacadas.
Fuga massiva da população em Mocímboa da Praia
Foto: Associação Civil de Moçambique
D. Luiz Fernando fala em mais de 200 mil deslocados internos atualmente por conta deste cenário em uma região que já tem tantos outros problemas, como malária e cólera. Essas pessoas expulsas de suas casas pela violência se somam aos que ficaram desabrigados após a passagem do ciclone Keneth, que em abril do ano passado devastou a região. Foi o segundo ciclone, em cerca de um mês, a atingir o país.
Pessoas que sobreviveram a ataques deixaram as regiões onde viviam e se abrigaram onde puderam, seja em um acampamento, na casa de conhecidos ou até no meio do mato. Tradicionalmente as famílias moçambicanas são grandes e quando acolhem familiares manter distância física de segurança para se evitar a COVID-19 se torna impossível. Em média, 10 pessoas vivem em casas humildes e pequenas no país.
É chocante para o brasileiro ver que os principais alvos dos ataques terroristas no norte de Moçambique são os menos favorecidos pelas riquezas produzidas no país. “Já são pessoas tão simples, vivem da agricultura, têm uma casa muito pobre, com o chão sem cimento, uma esteira, algumas panelas. Têm tão pouco e o pouco que têm é tirado, queimado. As pessoas acabam sofrendo duas vezes”, detalha o bispo Lisboa.
Depois de muito tempo sem dizer quem eram, os insurgentes passaram a se identificar como integrantes do grupo Estado Islâmico, um dos principais grupos que espalham o terror no continente africano. “Isso complicou mais a situação porque fez com que o governo reconhecesse que são forças externas que estão presentes aqui”, disse. O bispo brasileiro conta que este ano a população começou a ver mais a presença do Estado na região, com o reforço das tropas do exército. Este reforço contou também com mercenários russos do Grupo Wagner, empresa privada que atua em várias partes do planeta, além de seguranças particulares sul-africanos.
Para o brasileiro, o governo moçambicano adotou inicialmente a política “não muito boa” do silêncio. “Não só não falava (sobre o assunto) como não deixava falar”, disse ao reclamar da falta de transparência sobre o que realmente está sendo feito para combater o avanço do terrorismo no país. “É claro que em guerra não se expõe planos, mas eu falo de prestação de contas, porque a população fica insegura e queria ouvir uma palavra do governo”, disse.
O bispo ainda lembra que neste cenário tem aumentado a perseguição a jornalistas. Só que esta perseguição é mais por parte do Estado (moçambicano, não necessariamente o Islâmico). Poucos são os jornalistas que se atrevem a trabalhar na região. E quem é de fora, é difícil conseguir autorização para isso. Há várias notícias sobre equipamentos de jornalistas sendo apreendidos por militares nas ruas.
“Meses atrás, jornalistas foram presos, ficaram em poder das forças de Defesa durante muito tempo e nesse momento temos um jornalista desaparecido desde o dia 7 de abril, da rádio comunitária de Palma, chamado Ibraimo Abú Mbaruco”, contou.
O caso tem preocupado o Comitê para Proteger Jornalistas (CPJ), que pressiona o governo em busca de uma resposta sobre a localização de Ibraimo. A última mensagem que o repórter mandou para os colegas da rádio dizia: estou cercado de soldados. “Não sabemos se está vivo ou morto. Ninguém dá o paradeiro do jornalista. É triste porque não podem fazer o seu trabalho”, disse o bispo.
A Igreja Católica tem sido uma das poucas a falar sobre este cenário. “Nós estamos aqui vendo a realidade, sentindo a situação, tentando atender todas as pessoas envolvidas na guerra, sobretudo os deslocados”, disse.Igrejas alvos dos ataques
Só que isso também torna a Igreja alvo. Capelas foram atacadas nos últimos anos, assim como mesquitas. Um dos maiores ataques foi no início de abril, na Semana Santa. Em Nangololo, a histórica igreja do Sagrado Coração de Jesus foi invadida enquanto estava fechada. Os missionários haviam deixado o local um dia antes do ataque exatamente por causa da situação, que se agravava. Os extremistas arrombaram a porta e queimaram bancos. “Talvez a intenção era fazer uma grande fogueira e queimar a igreja, mas como a igreja é muito alta acabou não ardendo, queimando”, salientou o religioso. Os atacantes queimaram uma imagem de Nossa Senhora e quebraram a imagem do Sagrado Coração, que é o padroeiro da Igreja.
Mas este ataque não abalou o brasileiro tanto quanto o massacre de 52 jovens cristãos, em abril, que foram assassinados porque não quiseram ser recrutados pelos extremistas islâmicos. Por conta disso, estão sendo tratados como mártires de Xitaxi, onde ocorreu o drama. “Para mim o pior ataque não é atacar igreja. É matar pessoas. Uma já seria muito”, lamenta.
Em Moçambique os cristãos são maioria, mas em Cabo Delgado há mais muçulmanos. Os cristãos quase sempre são alvos dos ataques extremistas. Mas já houve mesquita atacada e os líderes muçulmanos mais respeitados no país não compactuam com esses ataques. O bispo brasileiro não acredita que isso possa levar a conflitos inter-religiosos. “Eles se apresentam como um grupo de religiosos radicais, mas nunca tivemos problemas entre as religiões aqui”, lembra.
No último domingo de Páscoa, o papa Francisco falou sobre a situação enfrentada por moçambicanos. O tema também foi motivo de preocupação do Papa durante a visita ao país, no ano passado, quando fez questão de reunir milhares de jovens de diferentes religiões em um ginásio poliesportivo em Maputo, ressaltando a necessidade do diálogo, o respeito ao próximo e falando em ecumenismo.
A visita foi em setembro, pouco antes da última eleição presidencial moçambicana, e teve como tema Esperança, Paz e Reconciliação. “O que Moçambique precisa é de reconciliação”, lembrou bispo Lisboa, destacando que três acordos de paz já foram assinados no país ainda marcado por intensa rivalidade política. “Mas a paz verdadeira ainda não chegou. Não se acolhe, não se aceita o diferente. Então, aquele que é de oposição, que pensa diferente, é sempre considerado o inimigo. Enquanto isso reinar no país não pode haver paz”, disse.
Dom Luiz Fernando Lisboa diz ainda que até as Nações Unidas sabem do que está acontecendo em Cabo Delgado e lembra que qualquer país pode ser solidário com Moçambique neste momento, compartilhando o que puder, pois é preciso dar assistência aos mais afetados.
O país confirmou cerca de 3 mil infectados pelo novo coronavírus até agora e 19 mortos. De acordo com a embaixada do Brasil em Maputo, mais de mil brasileiros deixaram Moçambique nos últimos meses preocupados com a pandemia. Entre eles, estavam três missionários da equipe de D. Luiz Fernando que voltaram para o Brasil porque fazem parte do grupo de risco, de acordo com o bispo. Mesmo reconhecendo que não se deve expor as pessoas, o religioso lembra que nenhum missionário deixou a região por medo dos terroristas. “Missionário não abandona sua gente”, frisou.
Risco ele sabe que corre. Não só por estar em uma região onde os ataques extremistas se intensificam, mas também por falar ao mundo o que nem todos em Moçambique querem que seja dito (principalmente algumas autoridades locais). “Não tenho medo. A Igreja tem que se pautar pela verdade. Sei dos riscos, estou consciente, mas não posso deixar de falar”, disse. E ao lembrar das pessoas que estão escondidas, deslocadas e não têm a oportunidade que ele tem para falar, concluiu: vou continuar falando em nome delas.
Mapa da África Austral com destaque a Moçambique. Fonte: Wikicommons
Mapa de Moçambique, destaque para Cabo Delgado e Pemba. Fonte: Wikicommons
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Bispo brasileiro desafia terrorismo em Moçambique - Instituto Humanitas Unisinos - IHU