04 Agosto 2020
"Afinal, esse foi o erro de Caim, e esse sempre foi o erro mais profundo do ser humano: escolher a violência em vez da palavra, seguir o próprio caminho sem se voltar para trás para aprender a reconhecer a verdade do outro, a verdade do irmão. Pensar que possui toda a verdade é a forma mais extrema de ignorância. Então a Lei da palavra naufraga e deixa que o sangue de Abel, novamente, se misture com a terra", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 03-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
O homem não é uma criatura mansa, necessitada de amor, capaz no máximo de se defender quando atacada, altruísta, feita para viver com seu próprio semelhante na paz e na solidariedade, mas é originariamente um ser - para a tragédia grega, o ser mais "estupendo" e mais "tremendo" (deinon) – que traz consigo uma crueldade e uma capacidade criminogênica que assustaria até os animais mais ferozes, uma hostilidade primária em relação a seus semelhantes que não tem comparação. Essas palavras que pesam como sentenças que não deixam via de saída não são minhas, mas podem ser lidas diretamente do judeu Freud, o pai da psicanálise.
Trata-se de um retrato do ser humano que parece sem esperança e que justifica o fato de que a sociedade civil sempre se sinta ameaçada por forças destrutivas. É o legado escabroso de Caim que cada um de nós carrega consigo, porque, como Freud reitera, em perfeita sintonia com a história bíblica, "o ódio é mais antigo que o amor". Não é por acaso que a narrativa bíblica se origina de dois gestos profundamente transgressivos. O primeiro realizado por Adão e Eva, insuflados pela serpente, que violam a proibição de acesso à árvore do conhecimento; o segundo realizado por seu primeiro filho, Caim, que com crueldade e ferocidade ("humana demasiado humana") põe fim à vida de seu irmão Abel. Nenhuma pastoral, nenhuma representação tolerante e retoricamente altruísta do homem. Antes: homo homini lupus. As primeiras páginas da história do ser humano na história bíblica estão manchadas pela rejeição da Lei e pelo sangue fratricida. Mas mesmo Freud, em sua gênese do aparato psíquico, permanece nessa mesma linha de pensamento: o ser humano jogado no mar ingovernável da vida, vive inicialmente o mundo como estranho e fonte inextinguível de perturbações.
O estranho e o hostil coincidem e animam o ódio como resposta defensiva. Por esse motivo, o ódio é mais originário que o amor. Mas o gesto de Caim torna essa primazia - abertamente teorizada por Freud - ainda mais desconcertante, porque nesse caso não é o estranho que é vítima, mas o mais próximo, não o desconhecido, mas o irmão de sangue. Qual é a culpa imperdoável de Abel? O fato de ter destituído o irmão mais velho de seu lugar de privilégio: ser o único filho na face da terra, o filho único que se realiza como uma espécie de pequeno deus pelo desejo de sua mãe. O nascimento de Abel é vivenciado como uma intrusão traumática que o destrona dessa posição única e o obriga ao vínculo trabalhoso com o irmão. Com o acréscimo decisivo que diante do juízo de Deus são os dons de Abel mais apreciados e não os seus.
Assim, a frustração se mistura com um profundo sentimento de inveja. Caim é privado de seu privilégio pela mesma pessoa (Abel) a quem Deus mostra amar mais. Eis, então, o irmão se revela como a fonte insuportável de sua alienação: Caim o golpeia até a morte para acabar com uma hemorragia de seu próprio ser que o esvazia de todo valor.
Temos aqui as duas raízes fundamentais do ódio: por um lado, o sentimento de frustração; ser rebaixados, subordinados, descartados, deixados de lado, dispensados.
Pelo outro, o sentimento de inveja; a impossibilidade de tolerar a felicidade, a alegria, a vida plena do invejado, o desejo de querer ser como aquele contra quem se desencadeia a agressão e a impossibilidade de ser assim. É por isso que Lacan evoca o mito clássico de Narciso para ler o gesto de Caim: ao golpear o irmão mais amado por Deus, Caim manifesta sua extrema paixão narcísica de querer ser o único, de querer roubar o segredo de Abel, de ser como ele.
A palavra fundamental de todo o relato bíblico não é, como sabemos, aquela do ódio, mas aquela do amor ao próximo. No entanto, aquela bíblica seria uma retórica desprovida de força se esse amor fosse situado como um simples cancelamento do ódio. Diversamente, é precisamente com Caim que o homem dá seus primeiros passos na história. O texto bíblico não recua diante desse escândalo.
Em alguns de seus sermões, Santo Ambrósio, bispo de Milão, insistia em colocar Caim e Abel, bem antes de Freud, como duas instâncias simultaneamente presentes no ser humano como tal. Caim e Abel não representam o bem e o mal entendidos como dois valores externos e rigidamente contrapostos, mas encarnam duas paixões internas que movem tumultuosamente o ser humano. Uma oscilação que somos obrigados a experimentar em nossa vida individual e coletiva.
O maior erro que pode ser cometido em relação ao Caim que todos nós somos é, de fato, identificá-lo definitivamente com o imperdoável assassinato do irmão, para nos libertar assim de sua sombra. Dessa maneira, o assassino só poderia ser assassinado de acordo com uma inexorável lei do talião. Diversamente, o Deus bíblico coloca uma marca na testa de Caim para protegê-lo desse risco e para interromper a corrente da violência. Um sinal que comemora a morte do irmão e que desidentifica Caim de "ser" um assassino.
Mas se Caim merece a proteção de Deus, é porque todos somos assim. Porque todos nós carregamos em nossos corações o verme da inveja mortal. É necessário desidentificar Caim de seu gesto para permitir-lhe o acesso a outra forma de vida. Por isso, ele será pai e construtor de cidades.
Se o ódio vem antes do amor, o ódio não pode ser a última palavra sobre o sentido da vida. É isso que está em jogo naquela aposta que chamamos de Civilização e que toma corpo toda vez que a Lei da palavra se impõe sobre a ausência da Lei da violência.
Afinal, esse foi o erro de Caim, e esse sempre foi o erro mais profundo do ser humano: escolher a violência em vez da palavra, seguir o próprio caminho sem se voltar para trás para aprender a reconhecer a verdade do outro, a verdade do irmão.
Pensar que possui toda a verdade é a forma mais extrema de ignorância. Então a Lei da palavra naufraga e deixa que o sangue de Abel, novamente, se misture com a terra.
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O legado de Caim, da violência à palavra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU