02 Junho 2020
Conheço Matteo Zuppi há muito tempo. Ele atuou por muito tempo na paróquia de Trastevere e por um curto período em Torre Angela, periferia leste de Roma. Sua missão continuou por anos no Vicariato de Roma. Agora ele é bispo de Bolonha e cardeal nomeado pelo Papa Francisco. Ele sempre foi um pastor próximo do sofrimento e da necessidade. Parece-me que não considera a fé e a dúvida como inimigas. É por isso que senti a necessidade de ouvir seus pensamentos sobre o tempo sem precedentes da vida que estamos atravessando.
A entrevista é de Walter Veltroni, publicada por Corriere della Sera, 31-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Walter Veltroni é político e jornalista italiano. Foi por duas vezes eleito prefeito (sindaco) de Roma - a primeira vez, em 2001, e a segunda, em 2006, com 61,8% dos votos. Renunciou em 13 de fevereiro de 2008, para concorrer às eleições gerais italianas, em abril do mesmo ano. É também secretário nacional do novo partido de centro-esquerda italiano, o Partido Democrático, e líder da coalizão PD-Itália dos Valores (Italia dei Valori), formada para disputar as eleições de 2008.
Veltroni é considerado como um dos mais populares políticos de centro-esquerda do seu país.
Eminência Zuppi, existe, neste tempo sem precedentes, uma questão espiritual que se apresentou para a sua consciência com maior dramaticidade?
O confronto com o mal. É algo muito físico e muito concreto, decisivo. E você entende isso porque a água subiu até o pescoço, porque a vida mudou, a cidade se tornou um deserto, porque você teve pessoas próximas que ficaram doentes, viu as imagens de Bergamo, porque entendeu que, como o Papa Francisco disse, era errado acreditar-se sãos em um mundo doente. A luta contra o mal se torna quase física. É como quando alguém fala em favor da paz, contra a guerra, mas depois, quando a violência irrompe e chega até você, você entende que o que disse ou pensou não era um exercício voluntarioso, puramente moral, mas uma luta fundamental, decisiva para a sua vida e para a vida dos outros. Eu diria que esse foi o grande exercício espiritual. O outro foi a reflexão sobre a interdependência de comportamentos, sobre a natureza da relação dos gestos entre nós. Se sou imprudente e ponho em perigo alguém, ou se não ajudo alguém e fujo, comprometo seu destino, o meu e o dos outros. É como se essa pandemia tivesse ligado os humanos a uma "comunidade de destino".
Privado e público estão de volta em estreita relação. Afinal, quando éramos um pouco mais jovens, tínhamos até a ambição de fazê-los coincidir. O mundo de repente se interconectou, de mônadas isoladas nos tornamos células interdependentes de um único organismo. Homem planetário, feito de sofrimento, relacionamento, esperança. Não é apenas um problema de higiene, é também uma dimensão muito espiritual. E, como todas as coisas espirituais, deve ser muito concreta e baseada na relação com os outros. O espiritual é a alma das nossas relações e se alimenta delas, dá sentido, linfa à nossa vida social.
O vírus gera medo e necessidade dos outros, juntos. Como o tema do outro parece ter entrado nas consciências?
A ausência nos faz entender o valor da presença. O fato de a ausência ter sido física, porque tínhamos que manter distância dos outros, nos fez entender a importância de nossa relação com o outro. O homem, como Thomas Merton disse, não é uma ilha. Não pode ser uma ilha. A solidão pode ser, em nosso tempo, uma doença. Individual e social. Os idosos que não podíamos visitar, os filhos que viram seus pais e mães irem embora na solidão ... Felizmente, tudo isso nos escandaliza, nos causa dor, não nos pertence, não se assemelha a nós. Aqueles caixões na noite de Bergamo foram socos no estômago. A solidão, a ideia de que os idosos sejam "descartados", é um escândalo que se revelou em sua brutalidade. E não podemos aceitá-lo. Mas a coisa mais importante que aprendemos nessa crise é que devemos isolar o vírus, e não o outro de nós. Às vezes, as duas coisas coincidem e isso é suicida, porque somos todos "outros" diante da ameaça da vida e é preciso pouco para que inclusive nós nos tornemos o inimigo. Portanto, o isolamento, paradoxalmente, pode nos ajudar a superar a distância, se entendermos que o verdadeiro isolamento é do vírus, não do outro.
De quem você mais sentiu falta neste período?
Da comunidade, no sentido do encontro com as pessoas. Celebrar a Eucaristia sem pessoas foi um jejum, um jejum muito exigente. O que eu vivo, aquilo pelo que eu vivo, é a comunidade, o relacionamento com os outros. A ausência dessa fisicalidade é o que mais senti falta.
Deus e Auschwitz. Deus é uma pandemia que mata, especialmente a mais frágil. As epidemias evocam o caráter milenar do castigo divino. Mas qual a importância da responsabilidade humana, do livre arbítrio dos homens?
Essa é sempre a grande questão. Para Auschwitz, lembramos as palavras de Elie Wiesel. Há uma criança enforcada pelos nazistas que está morrendo. Uma voz diz ‘Mas onde está Deus agora?’. A resposta: ‘Aqui está, está pendurado naquela forca’. Sobre Auschwitz, a história falou claro. A responsabilidade humana não pode ser atribuída a Deus. Mesmo sobre o vírus, temos que assumir alguma responsabilidade. Devemos nos perguntar ‘para onde foi o homem’. Usamos todos os recursos, ambientais e humanos, para construir uma sociedade frágil e voraz. E não sabemos como nos unir, mesmo diante da maior tragédia do nosso tempo. Somente juntos podemos pensar em enfrentar um desafio como esse. Mas mesmo nesses meses, em todos os lugares prevaleceram os protagonistas, as astúcias, as polêmicas acrimoniosas, as pequenas coisas. Construímos os muros, mas obviamente os muros não nos defendem e o vírus invisível dissemina-se.
Ele nos convence a construir muros e depois zomba deles. Essa crise nos confrontou novamente, como em tempos de guerra, com a morte. É um confronto alto e necessário para a vida. É a consciência de um limite natural, quem não o enfrenta vive mal, vive de uma maneira imprudente. Isso nos ajuda ficar mais próximos, a encontrar palavras mais verdadeiras, a ser mais essenciais. E eu também acredito a dar uma perspectiva espiritual. Nossa fé nos fala de um Deus que tomou o vírus da vida porque, ao nascer, ele aceitou a vulnerabilidade. Ele é um Deus, não o esqueçamos, crucificado, que nos ajuda a ver e suportar os sofrimentos. Ele é um Deus que ajuda a enfrentar o mal. Entendo, sinto que ele não é um estranho, mas que ele está aqui, perto de mim. Ele conhece a dor. Uma frase é frequentemente usada: ‘Eu não acredito, mas sinto muita sua falta’. É uma formulação lindíssima, que expressa a humildade da dúvida, o desejo de busca. O vírus também nos ajudou a encarar as verdadeiras questões da vida. E da vida além da vida.
Podemos falar de um apocalipse a respeito da pandemia?
Apocalipse é o confronto para o qual o próprio Evangelho nos convida. Ele nos diz: ‘Eu não garanto a terra da fartura. A vida ajuda você a viver, a não fugir, a não passar da inconsciência ao terror. Mas ser homem de verdade.’ Quando o céu cair sobre a terra e a natureza se transformar, quando se multiplicarem as guerras, as pestilências – usa exatamente esses termos - o convite de Jesus é: ‘Olhe para o alto’. É o convite à esperança, para não se deixar tomar pelo terror. E depois o outro grande convite: mude, mude sua atitude. E isso é uma coisa muito séria, mesmo para quem não acredita. O que aconteceu precisa nos fazer mudar. Devemos tentar mudar e valorizar o que aconteceu para tornar o mundo menos doente, para mudar a nós mesmos em nossos relacionamentos com os outros, para tentar entender o que realmente importa. Mude aquelas atitudes, para que você possa ser mais forte que o Apocalipse. O Apocalipse não vence. É por isso que precisamos ‘olhar para o alto’. Nós temos que mudar. Mas teremos coragem de fazê-lo? Há quem diga que não seremos mais como antes, seremos piores. Em vez disso, tenho esperança nos seres humanos.
O objetivo que devemos nos propor é voltar à vida anterior?
Voltar à vida anterior, mudando a nós mesmos e começando a mudar o mundo. Certamente muitas coisas serão diferentes e devemos fazer disso um tesouro de crescimento e conscientização, mas a virtude de que mais precisaremos, para o tempo que está chegando, é a humildade na busca do futuro. Humildade, porque essa pandemia que derrubou o mundo foi uma grande humilhação para todos. A geração de nossos pais, tinha o Apocalipse na cabeça e no coração. Mas aqueles italianos começaram a construir humildemente casas para seus filhos e bem-estar para os filhos de seus filhos. Acho que essa humildade nos servirá para entender que só estamos bem se os outros estiverem bem. Que toda injustiça produz dor coletiva. Nós éramos frágeis e arrogantes antes. De fato, porque é arrogante ver e não fazer nada, perceber e adiar. Nós éramos imprudentes, como os narcisistas e os arrogantes. Como aqueles que pensam que sempre podem se dar bem, de qualquer maneira. A normalidade que devemos logo conquistar é a de uma vida transformada.
Voltar para uma nova vida, então. O conceito de distanciamento social não é um oxímoro?
Certamente é. O risco, se o vivermos não para combater o vírus, mas pensar que podemos conseguir sozinhos ou para combater os outros, é que a injustiça aumente ainda mais. Hoje as diferenças, as desigualdades estão crescendo e isso pesa na vida e na segurança de todos. Quando você se encontra no apocalipse, entende quanto tempo foi perdido e quantas oportunidades foram perdidas. Agora não se pode mais adiar. Nossos pais viam os escombros físicos e morais. Eles entenderam que era necessário recomeçar e mudar, que não se podia perder tempo.
Um pastor bispo como você tem medo do empobrecimento deste país? Das pessoas que perdem o emprego, os negócios que fecham?
Os italianos no limiar da linha da pobreza são calculados em milhões. E, como essa soleira é muito estreita, é muito fácil cair. Há necessidade de trabalho e menos precariedade na vida. Devemos prestar muita atenção e fazer exatamente o oposto do isolamento, ou seja, a solidariedade. Existem muitos sinais positivos: o que os médicos, as enfermeiras fizeram, as refeições preparadas para quem não tem o que comer ... Em várias paróquias, os cidadãos doaram alimentos: ‘Aqui deixa quem tem e leva quem precisa’. Não é assistencialismo, é solidariedade.
A principal mudança não está realmente em recomeçar pelos últimos após essa crise?
Não há dúvidas. Sempre vale a pena começar dos últimos. Porque são eles que sempre pagam as consequências mais graves. Se soubermos ajudar os últimos, os primeiros também ficarão melhor. Um furacão, uma enchente, uma pandemia atingem a todos indiscriminadamente, mas deixam marcas diferentes, do ponto de vista social. A dor deve ser aliviada. Não é o band-aid do assistencialismo, mas com a vacina do trabalho, que dá segurança e serenidade. A pandemia agia como uma radiografia que mostrou os pontos de fratura de nossa casa comum. É preciso cuidá-la. Rapidamente e de maneira justa.
Como se comportaram os italianos? Existe o risco que a responsabilidade demonstrada, devido à situação social, possa se transformar em raiva, em ódio?
Se as respostas demorarem, a desilusão aumenta. A ideia de que, uma vez terminada a emergência, cada um permanecerá sozinho com suas próprias dificuldades é exatamente o que devemos evitar. Caso contrário, o sentimento de raiva pode aumentar. Já estava lá antes, não vamos esquecer. No ano passado, De Rita falava do rancor pelo luto não elaborado pelo bem-estar não recebido. Imaginem hoje, que todos temos enormes dificuldades. E o outro risco é recomeçar como se nada tivesse acontecido, tentar voltar a ser os mesmos de sempre.
Estou mais impressionada com as pessoas que agora estão com dificuldade para sair de casa do que com aquelas animadas por uma necessidade de relações...
A beleza do domingo passado foi ver pessoas se reencontrando. Então, é claro, há a falta de bom senso, querer pensar que não há mais problemas, que não se deve mais ter cuidado. Mas a necessidade de socialidade não me assusta, no máximo o contrário. Que o isolamento possa nos convencer de que podemos viver sem os outros. Que o isolamento se torne uma patologia, como é. Até agora, tem sido uma maneira de nos proteger, mas agora temos que nos proteger do isolamento.
Falcone e Borsellino tinham ideias políticas distantes, talvez opostas. No entanto, eles trabalharam juntos, viveram suas batalhas pela legalidade juntos, sofreram juntos, morreram, podemos dizer, juntos. Por que na Itália, diante de uma emergência, o diálogo não é praticado em nome do interesse nacional?
Esses dois homens tinham algo que os unia profundamente: o senso de lealdade, do bem comum, da justiça. Eles tinham sensibilidades muito diferentes, mas se viram trabalhando juntos e lutando juntos contra os poderes criminosos. Posso ter ideias diferentes das suas, mas temos um inimigo em comum para derrotar, naquele caso, um vírus invisível e letal como a máfia. O personalismo, a ideia do ganho material imediato, do lucro pessoal e não o cuidado pela casa comum, pelo bem comum, para as instituições, enfraquece a todos. É a ideia do bem comum que devemos reencontrar, não há dúvida.
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“O que aconteceu precisa nos fazer mudar. Nós devemos entender o que realmente importa”. Entrevista com Matteo Zuppi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU