23 Mai 2020
Quando o Papa a convidou para participar de duas reuniões preparatórias para a Laudato Si’, “sobre o cuidado da casa comum”, Vandana Shiva lhe trouxe um presente, “uma estola de algodão orgânico tecida manualmente nos Ashrams de Gandhi, pertencente ao projeto em defesa dos agricultores indianos presos ao algodão geneticamente modificado. Nós salvamos as sementes locais e ajudamos os agricultores a retornar ao orgânico”.
A entrevista é de Federica Re David, publicada por Vida Nueva Digital, 22-05-2020. A tradução é do Cepat.
Fundadora na Índia, há 30 anos, da organização Navdanya para a defesa das sementes orgânicas, da biodiversidade e dos direitos dos pequenos agricultores, você está convencida de que as mulheres salvarão o mundo. Por quê?
Porque já estão fazendo isso. Somos seed keepers, guardiãs das sementes, nenhum poder na Terra pode nos impedir de trabalhar na terra e pela Terra. Trabalhamos para criar um novo sistema baseado no cuidado e na partilha, justamente conforme aponta a encíclica.
Mas o mundo não está salvando as mulheres, vítimas da desigualdade de gênero, violência, exploração. Como podem se defender?
Em qualquer sistema violento, como o que vivemos, as mulheres pagam um preço muito alto. É muito importante que se reconheça que são elas as que sofrem a pior violência. O problema está na dupla desigualdade, econômica e social.
Das quais as vítimas do tráfico são a face mais dramática.
A violência, o tráfico, a escravidão, são impactos da desigualdade. O direito ao sustento, à dignidade do trabalho, aos recursos, à terra, deve ser reconhecido pelas mulheres.
Durante o trabalho do Sínodo para a Amazônia, houve um debate sobre a questão feminina e sobre o papel ativo da mulher na Igreja. O que pensa?
Se você vai aos Uffizi ou às igrejas de Florência (a cidade onde Navdanya Internacional tem sede, além de em Roma, n.d.r), quem encontra no centro? Maria. A Igreja carrega um peso histórico que não conheço o suficiente, mas acredito que o Papa Francisco aborda o problema, pode fazer isso, encontrando o momento adequado, da mesma maneira que conduziu a Igreja para o lado da Mãe Terra, em vez daqueles que a exploram. Maria, como a mãe de Jesus, tem em si a cura para as gerações futuras.
A desigualdade é um problema que interpela a todos?
Todos os cultos tiveram lampejos de mulheres líderes e mestras espirituais e forças opressivas patriarcais. Na Índia, houve místicas excepcionais como Mirabai. Agora, o patriarcado está dominando, mas acredito que respeitar as mulheres faz parte da redefinição da missão humana. Os homens poderiam se beneficiar do que Gandhi chamou o poder feminino da compaixão: uma oração ao dia me faz mais feminino, dizia.
Você é religiosa?
Sou profundamente espiritual, não religiosa.
Por que definiu Laudato Si’ como o manifesto do século XXI para a ‘Democracia da Terra’?
O Papa disse que o grito da Terra é o grito dos pobres, não são dois gritos separados. Aos pobres nega-se comida, água, trabalho, refúgio. Todas as coisas que a Terra proporciona. Devemos cuidar dela por meio dos sistemas de justiça econômica, reconhecer que está viva, respeitar todos os seus seres e suas necessidades. Em um dos diálogos para os quais fomos chamados no Vaticano, o objetivo era redefinir o paradigma econômico. A justiça e o cuidado da Terra são duas caras da mesma moeda.
Considera que o chamado do Pontífice é ouvido?
Estou convencida, é o que demonstra o Acordo de Paris sobre o clima. O Papa transferiu o debate de um calculo numérico para uma questão moral.
Defender a Terra e a biodiversidade é também um dever espiritual?
Com certeza. A Laudato Si’ lembrou as pessoas que fazemos parte da Mãe Terra, portanto, todas as outras espécies são nossa família. O Papa escolheu o nome de São Francisco, que chamava as aves e os lobos de irmãos e irmãs e a Terra de mãe. Muitas frases da Encíclica ecoam em minha cultura, minha civilização, que se baseia na ideia da Terra como única família.
A semente orgânica expressa a integridade da criação, os organismos geneticamente modificados a negam: para mim, GMO significa “God Move Over, deus se afaste, porque agora nós somos os criadores...”.
Pode existir uma aliança entre o seu movimento e os jovens que seguem Greta Thunberg?
Greta quis se reunir comigo em Paris e compartilhou minha luta. Para aqueles que me dizem que estes jovens que protestam são brancos, respondo que é óbvio: as crianças negras pobres morrem de fome. É um tanto absurdo esperar que as crianças de quem retiraram a mãe e a comida se levantem por uma greve sobre o clima. As outras são crianças privilegiadas, mas veem para onde o mundo caminha. Também devem falar em nome daqueles que não tem o privilégio de poder se manifestar.
Como é possível enfrentar o drama dos migrantes?
Se cuidamos da Terra e o solo, produzem alimentos. Com o cultivo industrial, os solos foram destruídos e as pessoas foram arrancadas de seus lares. Nos quatro países ao redor do lago Chade, as atividades comerciais ocupam 80% do curso dos rios. Os camponeses não têm água, os pescadores não têm peixes, os pastores não têm pasto.
É daí que surgem as guerras e as crises de refugiados. O sistema que é responsável deveria se desculpar e acolher os que chegam. Se a Terra é nossa casa comum, nossa mãe, cada comunidade tem o direito de estar em qualquer lugar da casa.
Entretanto...
Fecham-lhes a porta na cara porque, como explico no livro El planeta de todos (ed. Feltrinelli), 1% da população tem o controle da economia global e não quer perdê-lo. Para ter poder, precisa criar ondas de ódio, medo e exclusão. Enquanto a sociedade permanecer ocupada em se polarizar, não se centrará no problema da regeneração da Terra e da justiça social e econômica.
Fazem as pessoas acreditarem que os refugiados retiram o seu trabalho, mas os refugiados não têm trabalho, a verdade é que as pessoas perdem seus trabalhos devido à nova economia tecnológica. Os Estados Unidos são uma terra de refugiados e migrantes, os nativos foram assassinados pelos colonizadores. No entanto, enquanto a Estátua da Liberdade saúda as pessoas, convidando-as para entrar, o presidente Trump as rejeita.
Quão concreta é a possibilidade de uma mudança?
Sou otimista, acredito que estamos em uma fase de transição. Estamos criando um novo sistema. Eu cultivo a esperança, a esperança não vem do céu ou do supermercado. Você não a compra, cultiva. Como disse Gandhi, a Terra proporciona o suficiente para satisfazer as necessidades de cada homem, mas não a cobiça de cada homem.
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“O Papa transferiu o debate climático de um cálculo numérico para uma questão moral”. Entrevista com Vandana Shiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU