23 Abril 2020
Nesta entrevista contamos com as reflexões do padre Arturo Sosa, s.j., padre jesuíta venezuelano, superior-geral da Companhia de Jesus no mundo. Para Sosa, “a pandemia revelou de um modo inesperado como temos organizado nossa convivência”. Ele é filósofo, teólogo e doutor em Ciência Política. Foi diretor da Revista SIC (1979-1996) e do Centro Gumilla (1985-1994). Superior da Companhia de Jesus na Venezuela (1996-2004) e reitor da Universidade Católica de Táchira.
Padre Arturo Sosa, superior-geral dos jesuítas. Foto: ACI Prensa
A entrevista é de Juan Salvador Pérez, publicada por Revista SIC, revista do Centro Gumilla de Caracas, 20-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Uma pandemia que nos coloca cara a cara com a morte, por mais que queiramos maquiá-la de “gripe”... C.S. Lewis aconselhava-nos que quando chegasse o fim, deixássemos que este nos encontre fazendo coisas sensíveis e humanas (rezando, trabalhando, educando, lendo, escutando música, dando banho às crianças, jogando tênis, conversando com os amigos e uma cerveja na mão), e não amotinados e mortos de medo. Porém hoje, sem dúvida, estamos mais neste segundo estado que no primeiro, por quê?
Pelo contrário, nos coloca frente a frente com a vida que temos. Ela nos revela de maneira inesperada como vivemos, como organizamos nossa convivência, quais foram as verdadeiras motivações para decisões tomadas no passado que tornam mais difícil enfrentar com sucesso uma crise como a que desencadeia uma pandemia. Uma crise que revela a crise da humanidade, do tipo de sociedade em que vivemos e passamos a considerar normais.
Há medo da morte dessa “normalidade”, à qual parece que muitos gostariam de voltar o mais rápido possível, sem considerar o que a crise da pandemia descobriu como componentes da injustiça estrutural da sociedade e do mundo em que vivemos.
Essa pandemia não é o fim da história ou o fim da vida humana. Sem reduzir nada a tanto sofrimento, tanta dor que ela produziu, desejo que a morte injusta de dezenas de milhares de seres humanos por causa disso possa abrir nossos olhos para muitas outras situações nas quais dezenas de milhares de seres humanos também morrem sem que cuidamos deles ou das injustiças que os causam. Por exemplo, o colapso dos serviços de saúde devido à pandemia pode abrir nossos olhos para os milhões de seres humanos que são permanentemente negligenciados em suas condições de vida e incapazes de viver saudáveis e de serem curados quando precisam.
Para que o fim encontre-nos fazendo coisas sensíveis e humanas, nossa vida deve ser cheia de humanidade nas coisas simples de todos os dias, mas também pode nos encontrar dedicando nossa energia a esforços reais, sistemáticos e compartilhados para mudar a estrutura da injustiça que caracteriza o mundo atual, que impede a maioria dos seres humanos de ter uma vida decente, que ameaça o destino do meio ambiente, natureza e humanidade do único planeta que temos.
Aparentemente, um dos principais “enfermos” da covid-19 é o sistema de liberdades. O protocolo assumido pelos países é o do confinamento, a quarentena geral obrigatória, o sítio das cidades, proibições, enfim... o autoritarismo diante da crise, como única forma de manejo da situação, por acaso não seria possível manter o Sistema de Liberdades? Não somos capazes de ser obedientes e livres ao mesmo tempo?
A crise da democracia, a fragilidade do compromisso dos cidadãos ou os surtos da antipolítica, os nacionalismos míopes e a multiplicação de lideranças personalistas que promovem o autoritarismo não são produtos da pandemia de covid-19. Mas ela nos ajudou a ver mais claramente esses sinais preocupantes presentes em regimes políticos em várias partes do mundo.
As medidas tomadas pela maioria dos governos fazem sentido para combater uma ameaça até então desconhecida. Exercer autoridade para ajudar a preservar a vida não contradiz um sistema de liberdades se for exercido por governos democraticamente legítimos. Os cidadãos conscientes da necessidade de contribuir para o Bem Comum, que significa cuidar da saúde e da vida da população, podem entender e respeitar esses tipos de medidas sem sentir a liberdade ameaçada. Um governo democraticamente legítimo pode ter um relacionamento com seus cidadãos que lhe permita exercer essa autoridade em virtude da responsabilidade com a qual foi investida pelos próprios cidadãos em um ambiente de comunicação livre e fluida que permita o cumprimento consciente de medidas razoáveis, mesmo que envolvam sacrifícios.
Outra coisa é, e como é lamentável quando acontece, tirar proveito da pandemia para acelerar a tendência personalista e autoritária de um governo com pouca legitimidade democrática. Ou aproveitar a pandemia para procurar aumentar a influência de um determinado Estado no equilíbrio de forças no mundo.
De uma consciência cidadã global, ou seja, sentindo-se cidadãos do mundo porque nos comprometemos conscientemente a contribuir para o Bem Comum da humanidade, a pandemia pode ser uma oportunidade para ir além da obediência a medidas razoáveis, para evitar uma expansão que a torna incontrolável e propor mudanças significativas no sistema econômico, político e social dominante no mundo de hoje. É uma oportunidade de renovar a consciência democrática, de conceber uma estratégia para reiniciar a produção de bens e serviços que inclua os “descartados” e acelere as medidas necessárias para reverter a deterioração do meio ambiente. É uma oportunidade de promover a liberdade de pensamento e liberdade de expressão, abrir as portas da educação abrangente e de qualidade a milhões de jovens que a desejam e renovar os sistemas educacionais para atender às demandas dos jovens em hoje e gerações futuras.
Gostaria de voltar ao velho e conhecido dilema de Epicuro, frente a todo esse tumulto pandêmico. “Ou Deus não quis ou Deus não pode impedir o mal no mundo”, em qualquer uma dessas duas premissas, o ser humano questiona a existência de Deus, ou pelo menos a existência de um Deus bom e onipotente, mas nós, crentes, que insistimos que Deus é amor (Deus caritas est), como ficamos?
Ninguém jamais viu a Deus: disse o único Filho, que está no seio do Pai (João 1, 18). Este versículo do prólogo do quarto Evangelho é um ponto de partida melhor para esta questão do que o chamado “dilema de Epicuro”, uma vez que não foi provado que tenha sido formulado, e em qualquer caso, o foi muito antes da existência de Jesus.
Por trás da palavra “deus” existem muitas idolatrias e não poucas ideologias que manipulam os seres humanos usando linguagem aparentemente religiosa. Portanto, é necessário começar perguntando a nós mesmos de que “deus” estamos falando. Se é o Deus de Jesus, a quem ele reconhece como o Pai misericordioso e o revela, dedicando sua vida a fazer o bem e dando-o por amor na cruz, condenado pelos representantes de outros "deuses", então é fácil encontrar Deus ao nosso lado nesta pandemia, ao lado daqueles que foram infectados, que cuidam deles de muitas maneiras ou tomam decisões buscando evitar sua expansão.
A pandemia abriu novas janelas para descobrir o compromisso de Deus com a humanidade ao longo de sua história. Um Deus que nunca foi indiferente à condição humana e escolheu o caminho da encarnação na pequenez de uma cidade pequena e uma família pobre para mostrar o caminho da libertação humana do amor. Um Deus que não para de atuar na história, mas que depende de nós perceber a sua presença atuante e escolher esse modo de vida e ação para tornar a história humana uma história de amor que salva.
Não foram poucas as pestes que açoitaram a humanidade e mudaram o rosto da vida dos seres humanos, o comportamento social... porém sobretudo se destaca a conduta dos cristãos diante dessas circunstâncias. Em 1591, Luis de Gonzaga carrega aquele doente em estado gravíssimo que estava jogado na rua e o leva para o hospital contagiando-se do tifo que o mataria. O que significa para o cristão de hoje carregar esse enfermo nos ombros?
Além disso, como cristãos, somos chamados a colocar sobre nossos ombros as estruturas doentes deste mundo para curá-las, ou seja, somos chamados a nos comprometer efetivamente com a transformação da atual ordem mundial, que mostra cada vez mais suas limitações para criar condições para uma vida humana digna para todas as pessoas, todos os povos e suas culturas.
Bocaccio começa sua novela Decameron (1352) – logo ao fim da Peste Bubônica que assolou a Itália – com esta frase: “É humano ter compaixão dos aflitos”. Será a humanidade mais solidária depois de superada esta pandemia? Aprendemos a lição?
Não podemos ser ingenuamente otimistas ou pensar que a percepção da pandemia nos une automaticamente. Em algum lugar, não me lembro agora, li que a humanidade está na mesma tempestade, mas nem todos no mesmo barco. Existem enormes diferenças nas condições em que sofremos com a pandemia. A lição que pode ser derivada dessa tempestade pode ser muito diversa, dependendo do barco em que é atravessada. Novamente, os mais pobres são os mais afetados.
A pandemia está sendo usada por alguns para consolidar seu poder ou aumentar seus benefícios particulares em muitas áreas da vida. Outros reforçaram seu egoísmo ou confirmaram sua aparência discriminatória. Muitos se fizeram perguntas que não sabem responder. Também é responsabilidade nossa, que nos sentimos discípulos de Jesus Cristo, o crucificado-ressuscitado, não perder esta oportunidade de entendermos melhor a missão para a qual fomos chamados e nos comprometermos a buscar e encontrar novos modelos de relacionamento entre os seres humanos e o meio ambiente e nos dedicarmos com toda a nossa energia para colocá-los em prática.
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Somos chamados a carregar nos ombros as estruturas doentes deste mundo para curá-las. Entrevista com Arturo Sosa, superior-geral dos jesuítas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU