Por: Cesar Sanson | 08 Mai 2014
Cientistas da Califórnia criam uma bactéria com três pares de bases de DNA em vez das duas naturais. O avanço multiplica as aplicações da biologia sintética e expõe o debate sobre as patentes de seres vivos.
A reportagem é de Javier Sampedro, publicada pelo jornal El País, 07-05-2014.
“Estamos aprendendo a linguagem com a qual Deus criou a vida”, disse Bill Clinton ao apresentar o primeiro rascunho do genoma humano, no ano 2000. Se é assim, os cientistas acabam de ampliar a linguagem de Deus. O código genético natural é composto por apenas dois pares de bases (o par A-T e o par G-C). Floyd Romesberg e seus colegas do Instituto Scripps em La Jolla, na Califórnia, acrescentaram agora o par artificial d5SICSTP-dNaMTP. Esse terceiro par de bases (ou de letras) pode ser replicado e incorporado ao DNA de uma bactéria sem ser reconhecido como uma anomalia, o que demonstra que um organismo pode propagar estavelmente um alfabeto genético expandido, com três pares de bases em lugar dos dois naturais.
A criação de vida artificial se aproxima assim um passo a mais, depois da criação dos genomas completos de uma bactéria e de um cromossomo da levedura, em ambos os casos a partir de produtos químicos de prateleira. Mas o novo avanço expõe questões inéditas, e não só para os engenheiros. Por exemplo, como o alfabeto ampliado permite construir genes e proteínas com componentes alguma vez vistos na natureza, seria permitido patentear seres vivos com essas letras artificiais?
A esta altura do século XXI, continua sem estar claro que existam leis universais da biologia, mas se alguma delas pode aspirar a esse título é a natureza da informação genética. Da mais humilde bactéria até o leitor deste artigo, todos os seres vivos do planeta Terra utilizam para esse propósito a dupla hélice do DNA e um código genético de quatro “letras” (a, g, t, c), as quatro bases ou nucleotídeos com os quais se escreve todo o texto biológico, ou “a linguagem de Deus”, na peculiar nomenclatura do ex-presidente Clinton.
Essa linguagem de quatro letras tem sido de grande valia para os seres vivos há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Mas a razão, sabemos agora, não é que seja a única possível, pois a bactéria criada por Romesberg e seus colegas parece funcionar igualmente bem com seis letras em vez das quatro naturais. Animados por este fato, os cientistas já estão pensando em acrescentar ainda mais bases artificiais ao código genético das suas criaturas. Embora não seja para isso, naturalmente, que eles têm mais pressa.
O trabalho de Romesberg, divulgado na Nature, é uma prova de princípio, mas tanto ele como outros especialistas na emergente disciplina da biologia sintética – a criação de organismos a partir de princípios básicos – consideram-no um grande passo adiante. Acreditam que facilitará muito os objetivos em curto prazo dessa tecnologia, que são a síntese de medicamentos, a produção de bicombustíveis, a alimentação e a regeneração dos ambientes danificados por toda espécie de dejetos.
A biologia sintética pretende criar do zero sistemas biológicos – como circuitos genéticos, bactérias e células superiores – que não existem na natureza, e que estão concebidos para algum propósito prático concreto. Embora seja um campo de pesquisa com apenas 10 anos de história, já obteve alguns feitos: bactérias que funcionam como biossensores; outras que sintetizam artemisina (um fármaco contra a malária), e uma série de fagos (vírus bacteriófagos, ou que infectam as bactérias) desenhados para dissolver os biofilmes formados pelos micro-organismos.
Entre as perspectivas mais imediatas, os biólogos biossintéticos propõem facilitar a produção de mais fármacos – cujas rotas sintéticas são às vezes de uma complexidade exasperante, e de um preço dissuasivo –, e também etanol e outros produtos úteis como combustíveis. “A capacidade de construir organismos fotossintéticos pode chegar inclusive a nos permitir utilizar a luz solar como a fonte de energia principal, e o dióxido de carbono (CO2) como a única fonte de carbono”, diz o bioquímico Andy Ellington, da Universidade do Texas, em Austin.
Entender o avanço de Romesberg e sua equipe de La Jolla exige um superficial repasse dos elementos da biologia molecular. A dupla hélice do DNA consiste em duas molas imbricadas entre si (“hélice” não é senão o nome matemático de uma mola). Cada mola é percorrida pela sequência de bases (ctaacgttaa…), o “texto” que contém a informação genética. E o que mantém unidas as duas molas é a afinidade seletiva: “a” se pareia com “t”; “c” se associa a “g”. Este emparelhamento específico é a chave da replicação: ao separar as duas molas, cada uma pode reconstruir a outra.
As novas bases artificiais também se pareiam uma à outra (d5SICSTP com dNaMTP), e graças a isso podem se replicar como seus colegas naturais. Um feito essencial dos biólogos da Califórnia foi garantir que a bactéria possa conseguir do ambiente as novas bases em sua forma simples, para depois as incorporar ao seu DNA. Isso exigiu situar na sua membrana um transportador compatível, que tiraram que uma alga.
Dentro de cada mola, a informação se organiza em grupos de três letras (trincas, ou códons, como agt ou ccc). Cada códon de um gene significa um aminoácido de uma proteína (as proteínas são rosários de 20 tipos de aminoácidos). Com as quatro bases naturais, podem-se formar 64 (4 elevado a 3) códons diferentes. Com as seis bases que resultam ao acrescentar as duas artificiais, podem-se formar 216 (6 elevado a 3) códons diferentes. O novo par de letras, portanto, triplica com acréscimo a capacidade de código do DNA.
“É possível que o maquinário biológico usado por Romesberg e seus colegas permita à bactéria, com o tempo, adotar as duas bases artificiais como parte do seu próprio alfabeto genético”, escrevem na Nature Ross Thyer e Jared Ellefson, do Centro de Biologia Sintética e de Sistemas da Universidade do Texas, em Austin. “Se for assim, abre-se um novo panorama, no qual a engenharia humana poderia saltar sobre um abismo que previamente tinha sido insondável para a evolução.” Seria preciso perguntar então por que a vida parou em quatro letras e assim prosseguiu durante 3,5 bilhões de anos.
Thyer e Ellefson têm certeza de qual será o próximo passo. O DNA não se traduz diretamente em proteínas: há um passo intermediário, chamado transcrição, que tira uma cópia de trabalho de uma das molas da dupla hélice e produz uma molécula muito similar ao DNA, mas com uma só fileira de bases: o RNA, que acessa o maquinário celular que traduz a sequência de bases (ggtacctt…) para a sequência de aminoácidos que forma as proteínas. Os cientistas da Califórnia não mostraram ainda que as duas novas bases possam ser transcritas como RNA, e isso é a próxima coisa que eles precisam comprovar.
De fato, o RNA não é apenas um intermediário para fabricar proteínas: também é capaz de se expressar em sofisticadas estruturas tridimensionais com funções próprias. Por exemplo, podem reconhecer pequenas moléculas do ambiente celular e ativar ou desativar genes por causa disso (os chamados riboswitches). Também se associam às proteínas, formando complexos essenciais para a vida (as ribonucleoproteínas).
A incorporação das duas bases artificiais a estas estruturas abriria um novo campo para os bioengenheiros. E isso muito antes de que se posa falar em novas proteínas com inéditos aminoácidos que sejam úteis, e inclusive patenteáveis. Mas, em longo prazo, será preciso considerar essa possibilidade também. “Um alfabeto genético expandido conduzirá a um alfabeto de proteínas expandido”, preveem Thyer e Ellefson. É uma jornada longa, mas não muito arriscada.
Em junho do ano passado, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu uma jurisprudência muito importante ao opinar, num caso contra a comercialização de um teste para o câncer de mama pela firma Myriad Genetics, que “os produtos da natureza” não podem ser patenteados. Os juízes se referiam à sequência dos genes que conferem suscetibilidade ao câncer, e que na prática são produtos da natureza, mesmo que não dos mais brilhantes.
Mas o novo DNA com seis letras é qualquer coisa menos um produto da natureza, e tal como está hoje a jurisprudência, pelo menos nos Estados Unidos, será tão patenteável quanto a fórmula do Viagra, embora certamente não tão rentável.
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Ampliando a linguagem de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU