16 Abril 2020
O importante estudo de Massimo Faggioli sobre o atual papa mostra por que ele se concentrou nos marginalizados da sociedade e da vida religiosa.
O comentário é de Julian Coman, publicado no caderno The Observer, do jornal The Guardian, 12-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em “Dois Papas”, o simpático filme de Fernando Meirelles, o diretor brasileiro nomeado ao Oscar imagina o papa Francisco e seu antecessor aposentado, Bento XVI, agora Papa Emérito, sentados lado a lado no sofá assistindo ao jogo Argentina e Alemanha na final da Copa do Mundo de 2014.
É um momento de convivialidade gentil entre Jorge Bergoglio, o jesuíta ativista e pé-no-chão de Buenos Aires, e Joseph Ratzinger, o teólogo conservador e não mundano da Baviera.
Mas, fora do cinema, o experimento dos dois papas foi menos bem-sucedido. A presença contínua e ocasionalmente pública de Bento no Vaticano fez dele um porta-estandarte para os tradicionalistas que estão determinados a se despedir da visão muito diferente de Francisco sobre o futuro do catolicismo.
Os papas tendem a definir e a ser definidos pela sua idade. João Paulo II transformou o Vaticano em uma “central elétrica” na luta contra o comunismo na era da Guerra Fria. Bento XVI se tornou o papa pós-11 de setembro, defensor da fé diante de uma ameaça perceptível do Islã e da crescente secularização no Ocidente. Ambos eram carismáticos, polêmicos e autoritários, e profundamente desconfiados das agendas reformistas liberais dentro da Igreja.
Bento, em particular, montou barricada em um espírito de não rendição, enquanto as tempestades da secularização e do relativismo sopravam para além dos portões do Vaticano.
Para a consternação de seus muitos críticos, Francisco escancarou as janelas do Vaticano e deixou entrar um pouco de ar.
O fascinante pequeno livro de Massimo Faggioli, “The Liminal Papacy of Pope Francis” [O papado liminar do Papa Francisco, em tradução livre] (Orbis Books), tenta explicar o porquê. Teólogo proeminente, Faggioli retrata Francisco como um papa apto para a era da globalização e seus descontentamentos. O espírito norteador deste pontificado, argumenta ele, é a convicção de que as barreiras e as fronteiras entre os territórios – e na mente – devem ser reimaginadas.
Para Francisco, escreve Faggioli, “a fronteira nunca é apenas um limes (em latim, uma fronteira rígida), mas também sempre limen (em latim, limiar). A liminaridade do pontificado de Francisco reside na sua reinterpretação das fronteiras ... Nenhum limite pode pretender excluir o ‘outro’, pois o limite, por definição, implica o ‘outro’. A fronteira por limitação também se relaciona”.
A linguagem é teórica, mas, na era de Trump, Putin e Orbán, quando o culto ao homem forte nacionalista voltou com vingança à política secular, ela descreve uma visão que ressoa muito além da Igreja Católica. Como primeiro pontífice não europeu nos tempos modernos, Francisco anunciou a si mesmo em Roma como alguém que veio do “fim do mundo”.
Desde que chegou ao quartel-general europeu do catolicismo, ele transferiu o poder do Vaticano para as Conferências Episcopais nacionais e às paróquias locais, e assumiu como missão defender os direitos dos periféricos e dos excluídos na vida secular e religiosa.
Enquanto Bento procurava uma Igreja fortificada, Francisco espera ver os muros e as fortificações de todos os tipos – físicos, doutrinais e espirituais – desmoronarem. Ao lidar com a crise migratória, ou com o status das pessoas gays e dos católicos divorciados na Igreja, a ênfase tem estado nos direitos e na dignidade das pessoas consideradas fora dos limites da legitimidade ou da respeitabilidade. Compaixão e misericórdia, virtudes liminares cruciais, substituíram o julgamento e a ortodoxia em uma nova hierarquia de valores.
Enquanto a crise migratória se transformava em uma guerra cultural na qual o cristianismo se mobilizava em nome do nacionalismo branco em países como a Itália, a Hungria e a Polônia, Francisco lavou os pés de um jovem prisioneiro muçulmano na Quinta-Feira Santa, visitou a ilha de Lampedusa para destacar a situação dos migrantes que pereciam no Mediterrâneo e transportou 12 famílias sírias para o Vaticano, depois de visitar os campos de refugiados na Grécia.
Faggioli cita Francisco em Lesbos em 2016, onde ele disse aos católicos locais: “A Europa é a pátria dos direitos humanos, e quem pisar em solo europeu deve sentir isso”.
O cuidado pastoral importa mais aqui do que a pureza doutrinária. Faggioli cita Francisco em sua carta aos bispos intitulada Evangelii gaudium, na qual ele declara: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” [n. 49].
A rápida decisão de se mudar do esplendor do Palácio Apostólico – onde os papas normalmente residiam – para uma modesta hospedaria romana para o clero foi um sinal precoce dessa intenção.
A reação dos tradicionalistas foi furiosa e concertada. Arquiconservadores como o cardeal estadunidense Raymond Burke deram o grave passo de acusar o papa de estar no erro em questões de ensino da Igreja relacionadas a casamento, divórcio e comunhão.
Depois do Sínodo sobre o futuro da Amazônia em novembro passado, Francisco foi acusado de incentivar a idolatria e o panteísmo ao permitir que figuras indígenas da fertilidade fossem exibidas nos Jardins Vaticanos. Sua defesa apaixonada dos migrantes levou os críticos a sugerirem que o papado está transformando a Igreja Católica em uma espécie de ONG. Linguagem envenenada e deslealdade aberta desse tipo não eram demonstradas contra um pontífice há séculos.
Como uma forma de resposta, Faggioli escolhe as palavras de Francisco durante uma homilia proferida aos cardeais em 2015: “A compaixão leva Jesus a um agir concreto: a reintegrar o marginalizado!”.
Em uma era de polarizações, divisões e guerras culturais, Faggioli acredita que essa paixão por aqueles que se encontram do lado errado de uma fronteira faz do papado de Francisco um ponto crucial para esta época. À medida que os muros sobem em todo o mundo, e os tempos se tornam cada vez mais temerosos e insulares, é difícil discordar. De estilo acadêmico, “Liminal Papacy” não é de fácil leitura, mas é uma leitura importante.
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Um pontífice que deseja que os muros caiam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU