06 Abril 2020
"Branco, imenso, o Papa que caminha parece encarnar com toda a sua pessoa a hóstia, esse material misterioso no qual o multíplice é unificado: os bilhões de bilhões de hóstias são a mesma, a única hóstia. É uma eucaristia que tem no centro o sumo sacerdote, a partícula humana, que sobe os degraus da igreja de San Marcello mancando, como se tivesse lutado até o amanhecer, atingido na articulação do fêmur que acabou se deslocando. Nesta luta de Jacó, as trevas da noite se casam com a luz do amanhecer, o mistério se funde com a revelação, o choque é o abraço, o medo é a esperança, o dom é ferida", escreve Giuseppe Genna, escritor italiano, em artigo publicado por Espresso, 05-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
(Foto: Vatican News)
Como está a noite? É uma densa treva. É o momento em que todos os símbolos se tornam verdadeiros. E a escuridão absoluta é quebrada por um minúsculo reflexo branco - e dourado. Assim, vemos o homem, sozinho, claudicante e luminoso em suas vestes, um pobre ser humano que avança no vazio, pobre carne humana que vai para a morte, avança solitário contra a escuridão. Vemos que profere as palavras de uma forma um pouco arrastada e encara a imensa praça deserta de colunatas, artificialmente azul, contra o anoitecer romano fosforescente pelas sirenes e a chuva incômoda que cobre a cidade e a pune. O crucifixo é erguido, em um silêncio rasgado pelos sons das sirenes além das colunas, e oito milhões de italianos se inclinam sobre as telas atônitas, a imagem entra neles e eles voltam a ouvir a história. Não estava, portanto, acabada essa inutilidade esquecida cedo demais: a história... Qualquer símbolo foi submetido, nas últimas décadas, a uma erosão voraz, por excesso de distração e adesão a um culto do instantâneo, desprovido de sinal e de significado, cheio apenas de fetiches, por trás dos quais nunca deixava de se exibir a origem autêntica do drama: a consideração inconsequente do eu.
(Foto: Il Sismografo)
Eram suficientes algumas moléculas virais para derrubar tudo e restaurar o medo, assim como se teme que o barco emborque entre as altas ondas da tempestade. Era suficiente um pequeno grão de matéria para restaurar a necessidade que o invisível falasse conosco e pudéssemos voltar a falar do invisível - essa grande remoção das últimas décadas, essa loucura que a humanidade praticou ignorando o preço, o salário do pecado, que é a morte. O invisível questiona a morte verdadeira e a resposta não vem das literaturas ou das filosofias, mas da altíssima profundidade de um pontífice, idoso e curvado, que parece uma molécula de luz na escuridão. Precisamos refletir sobre essa desproporção entre escuridão total e luz mínima: em um quarto escuro, se acendermos apenas um fósforo, a escuridão já não é mais escuridão. A escuridão é derrotada.
Observamos nos dias do contágio, e nos progressos da morte e do isolamento, os tormentos da carne e as revelações espirituais desse homem que veio do fim do mundo, escolhido por seus irmãos e capaz de pedir desde o primeiro instante que orassem por ele. Em dezembro, diante da cúria romana, ele havia advertido que "não estamos mais na cristandade, não mais!", e eram palavras iguais apenas ao gesto de seu antecessor que renunciou: não significavam ausência, mas o compromisso de uma presença mais forte. Assim como todos são capazes de transcender sua própria história, encontrando as razões essenciais, assim a Igreja encontra as suas, indo além da magnificência e horror de sua história. Um autoesvaziamento, uma anulação de si mesma na contemplação que todo sacerdócio impõe àqueles que estão em busca da luz divina, sem perder de vista os contornos e a substância do mundo: estar no mundo, mas não do mundo.
À medida que as métricas de contágios e mortes aumentavam dramaticamente, esse pontífice social e místico parecia retirar-se, anunciando um histórico Angelus por streaming. Havia notícias confusas sobre ele, se perguntavam se o suposto resfriado não esconderia uma positividade para o vírus. Entidades espetaculares, admiramos obscenamente as grandes notícias, o anúncio do apodrecimento em vida das carnes. Em vez disso, o Papa ia exatamente nessa ocasião dissolver por paradoxo a sociedade espetacular, baseada naquela admiração obscena. Era possível consumi-lo através de dispositivos, um pontífice engaiolado em uma "oração um tanto estranha" e que dizia: "Mas eu vejo vocês. Eu estou perto de vocês”.
Não éramos nós que o olhávamos, era ele que nos via. A distância criada pelo espetáculo era superada. Congelava nas telas o mecanismo da exposição, essa hedionda patologia contemporânea pela qual se pretende existir sendo vistos. O sol recua dez degraus nos degraus por onde havia descido. Não estávamos mais na cristandade, mas tampouco no tempo televisivo. Esse vigário nos impunha a cegueira, olhando para nós. E em 15 de março, no momento difícil em que a nação é posta totalmente em isolamento e as ruas estão vazias, a nação que grita das varandas como uma lagosta na água fervente, de repente o Papa se manifesta no deserto urbano, solitário em via del Corso em Roma, desconcertando milhões. Realiza uma peregrinação: de um ponto a outro da cidade eterna e santificada, no coração da secularização.
A distância do deserto é interna à cidade. Idoso, mas compacto, a cifose que curva o arco dos ombros, os braços parados ao lado do corpo, os passos de alguma forma vigorosos e ousados na calçada, no ar estranho e infectado. Não fala nenhuma palavra. A palavra não existe, esse silêncio no qual o octogenário avança é a plenitude de toda palavra.
Branco, imenso, o Papa que caminha parece encarnar com toda a sua pessoa a hóstia, esse material misterioso no qual o multíplice é unificado: os bilhões de bilhões de hóstias são a mesma, a única hóstia. É uma eucaristia que tem no centro o sumo sacerdote, a partícula humana, que sobe os degraus da igreja de San Marcello mancando, como se tivesse lutado até o amanhecer, atingido na articulação do fêmur que acabou se deslocando.
Nesta luta de Jacó, as trevas da noite se casam com a luz do amanhecer, o mistério se funde com a revelação, o choque é o abraço, o medo é a esperança, o dom é ferida. Qualquer escrita culmina aqui, nessa água da fonte nem doce nem salgada, quando é indistinguível a palavra do silêncio.
Então, o 27 de março, São Pedro, no entardecer italiano, sob uma chuva que deveria ser considerada bíblica. Mas nada deve ser dito, a escrita diminui aquele momento, quando se desdobra com seus efeitos especiais. A literatura é morta pelos escritores, mas o espírito não é morto pelos espirituais. Antes, será necessário entender que aquele momento foi tal, mas também estava fora do tempo. Uma totalidade se desenrolava, todas as oposições se tornavam síntese, curvando ainda mais os ombros sob o peso da responsabilidade de representar todos os seres humanos diante de Deus e Deus junto a todos os seres humanos. Um fulcro, um ponto de apoio. Um olho no ciclone: calmo, pois transfigurado. Alguém disse: estava no vazio - porém aquele vazio era a primeira catedral da cristandade. Alguém disse: não falava com ninguém naquele deserto - mas era ouvido por metade do mundo. Alguém disse: falou das densas trevas - no entanto, as iluminava. A imagem que entra na história é depurada pela ânsia do furo.
A repetição infinita, a da queda das Torres Gêmeas, não pode ser confrontada com o abismo compacto dessa última cerimônia de Francisco. Aqui a história não encontrou uma sua imagem: finalmente a perdeu. Esse momento foi o redemoinho de toda imagem, de toda palavra. A pura experiência do visível que consiste no invisível.
E justamente naqueles momentos em que o papa furava a história, chegava a notícia da morte de um dos mais extraordinários poetas italianos, Mario Benedetti. Ele havia escrito em seu último livro, "Tersa morte":
«Se le vite si ritraggono ognuna /
nel suo continuare o nel rimembrarsi /
avremo sempre le parole in posa».
E na tela não havia mais palavras em pose, silêncio em pose.
Mas na tela não havia mais nenhuma palavra em pose, nenhum silêncio em pose, não havia um Papa em pose, a praça em pose, nós não estávamos em pose e o olhar via a si mesmo, de uma vez por todas.
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Um pontinho de luz na escuridão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU