06 Abril 2020
As igrejas vazias desta Páscoa interrogam a nossa consciência, como cristãos? Elas têm a capacidade de nos dizer que em breve sempre estarão assim, se não renovarmos o nosso modo de viver a fé?
A reflexão é do filósofo, teólogo e padre checo Tomáš Halík, professor da Universidade de Praga e Prêmio Templeton 2014. O artigo foi publicado em Avvenire, 05-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No ano passado, antes da Páscoa, a Catedral de Notre-Dame, em Paris, pegou fogo. Neste ano, na Quaresma, em centenas de milhares de igrejas de diversos continentes, além de sinagogas e mesquitas, nenhum rito será realizado. Como sacerdote e teólogo, eu reflito sobre essas igrejas vazias ou fechadas como se fossem um sinal e um desafio de Deus.
Compreender a linguagem de Deus nos eventos do nosso mundo requer a arte do discernimento espiritual, que, por sua vez, exige um desapego contemplativo das nossas emoções e dos nossos preconceitos cada vez mais fortes, assim como das projeções dos nossos medos e dos nossos desejos.
Nos momentos de calamidade, os “agentes adormecidos” de um Deus malvado e vingativo difundem o medo e fazem dele um capital religioso para seus próprios fins. A sua visão de Deus é água para o moinho do ateísmo há séculos.
Mas eu não vejo Deus, em um momento de calamidade, como um diretor irascível, comodamente sentado nos bastidores, enquanto os eventos do nosso mundo precipitam, mas sim como uma fonte de força que opera naqueles que, em tais situações, dão prova de solidariedade e de um amor capaz de sacrifício, incluindo aqueles, sim, cujas ações não têm uma “motivação religiosa”.
Deus é amor humilde e discreto. Porém, não podemos deixar de nos perguntar se este tempo de igrejas vazias e fechadas não representa uma espécie de aviso para aquilo que poderia ocorrer em um futuro não muito distante: em poucos anos, elas poderiam estar assim em uma grande parte do nosso mundo. Já fomos avisados disso muitas e muitas vezes, a partir daquilo que aconteceu em muitos países. É preciso fazer uma séria tentativa para mostrar ao mundo um rosto do cristianismo completamente diferente.
Pensamos demais em converter o “mundo” e menos em converter a nós mesmos, o que não significa apenas “melhorar a nós mesmos”, mas sim uma radical passagem de um “ser cristão” estático a um “tornar-se cristão” dinâmico.
A Igreja medieval fez uso punitivo excessivo do interdito, levando toda a máquina eclesiástica a uma espécie de “greve geral”, na qual não se realizavam os ritos e não se administravam os sacramentos. Como consequência, as pessoas começaram a buscar cada vez mais uma relação pessoal com Deus, uma fé “nua”.
Proliferaram irmandades leigas e se manifestou uma onda de mística, que, sem dúvida, contribuiu para aplainar o caminho, por um lado, para a Reforma, não só de Lutero e de Calvino, mas, por outro, também da reforma católica ligada aos jesuítas e à expressão da mística espanhola. Talvez a descoberta da contemplação possa hoje contribuir para o “caminho sinodal” rumo a um novo concílio reformador.
No início da sua história, a Igreja primitiva dos judeus e dos pagãos conheceu a destruição do templo em que Jesus pregava e ensinava aos seus discípulos. Os judeus daqueles tempos encontraram uma solução corajosa e criativa: substituíram o altar do templo demolido pela mesa familiar, e a prática do sacrifício pela oração privada e coletiva. Aos holocaustos e aos sacrifícios de sangue, substituíram o “sacrifício dos lábios”: a reflexão, o louvor e o estudo da Escritura.
Mais ou menos no mesmo período, o primeiro cristianismo, banido da sinagoga, buscou uma nova identidade própria. Nas ruínas das tradições, judeus e cristãos aprenderam a ler novamente a Lei e os profetas e lhes deram novas interpretações. Não é uma situação semelhante à dos nossos dias?
No início do século V, quando Roma caiu, houve quem encontrasse imediatamente a explicação: para os pagãos, tratava-se de uma punição dos deuses pela adoção do cristianismo; para os cristãos, uma punição de Deus a Roma por ter continuado a ser a “prostituta da Babilônia”.
Santo Agostinho rejeitou ambas as interpretações e, naquele momento divisor de águas, desenvolveu a sua teologia da batalha epocal entre duas “cidades” opostas; não de cristãos e pagãos, mas de dois “amores” que residem no coração humano: amor próprio, fechado à transcendência (amor sui usque ad contemptum Dei) e o amor que faz dom de si mesmo e, assim, encontra Deus (amor Dei usque ad contemptum sui).
Este nosso tempo de mudança em nível de civilização não exige, talvez, uma nova teologia da história contemporânea e uma nova visão da Igreja?
“Sabemos onde a Igreja está, mas não sabemos onde não está”, ensinava o teólogo ortodoxo Pavel Nikolaevic Evdokimov. Talvez aquilo que o último Concílio disse sobre a catolicidade e o ecumenismo precise agora adquirir um conteúdo mais profundo. Chegou a hora de um ecumenismo mais amplo, de uma busca mais audaz de Deus “em todas as coisas”.
Naturalmente, podemos aceitar esta Quaresma de igrejas vazias e silenciosas simplesmente como uma breve medida temporária que será rapidamente esquecida. Mas também podemos aproveitá-la como kairós: um momento oportuno para “avançar para águas mais profundas” e buscar uma nova identidade para o cristianismo em um mundo que muda radicalmente debaixo dos nossos olhos.
A pandemia atual certamente não é a única ameaça global para o nosso mundo, agora e no futuro.
Façamos da aproximação da Páscoa um desafio a buscar Cristo novamente. Nós buscamos o Vivente entre os mortos. Tomemos coragem e tenacidade ao buscá-lo e não nos deixemos pegar de surpresa se ele nos aparecer como um estrangeiro. Nós o reconheceremos pelas suas feridas, pela sua voz quando ele nos falar intimamente, pelo Espírito que traz a paz e bane o medo.
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“Este é o momento de avançar para águas mais profundas.” Artigo de Tomáš Halík - Instituto Humanitas Unisinos - IHU