Uma sociedade marcada pelo fácil deslocamento, para alguns, e a alta fluidez, para muitos, entrou em confinamento indeterminado. A pandemia do coronavírus tem desvelado os limites da existência humana, das relações sociais, dos sistemas político e econômico. O vírus chegou a todas as partes do mundo em três meses, muito mais lento que a velocidade com que chegam as informações ou se deslocam ações e ativos financeiros, mas com agilidade e potência de colocar toda a ordem em xeque.
No momento em que o mundo procurava entender as implicações éticas e culturais da inteligência artificial, a disputa pelas novas relações sociais e de poder que a ultravelocidade da internet 5G demandava, a mais simples partícula fez retroceder, pela mais instintiva reação de defesa, ao princípio básico da vida: como assegurar as condições de existência do indivíduo e da humanidade? Esse movimento tem revelado a frágil sustentação da globalização econômica e financeira, as consequências do abismo da desigualdade social nas estruturas dos Estados e o impacto da movimentação e produção incessante em um planeta sufocado.
Ruas vazias em Manhattan, NY, EUA. Foto: Eden, Jeanine and Jim | Flickr CC
Em sua gênese e missão, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, desde antes da pandemia, vem analisando que a atual “civilização onde a norma da tecnociência, bem como o imperativo da primeira pessoa do singular, impuseram uma nova forma do existir humano a todos os campos da nossa atividade, fazem emergir o enigma de uma civilização avançada na sua razão técnica, mas dramaticamente indigente na sua razão ética”. Nesta crise, a quarentena pode ser o momento de reencontrar o sentido e a urgência do ser solidário e fraterno, como aponta o filósofo Massimo Recalcati: “O coronavírus nos ensina o valor da solidariedade, expondo-nos à impotência inerme da nossa existência individual; ninguém pode existir como um Ego fechado sobre si mesmo, porque minha liberdade sem o Outro seria vã”. Ou pode revelar um futuro de indivíduos ainda mais cerrados em si, pois como avalia Byung-Chul Han, “o vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa”.
Ruas vazias em Milão, Itália. Foto: Alberto Trentanni | Flickr CC
Durante esse tempo, separando por temáticas que nos façam compreender e projetar o futuro a partir da pandemia e da crise, semanalmente, selecionaremos revistas, publicações, entrevistas, artigos e vídeos produzidos e disponibilizados em nossos canais nas últimas décadas. Durante a quarentena e o isolamento, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, como parte de sua missão, convida os leitores à “busca de um projeto ético mundial, planetário, capaz de forjar um novo contrato social universal, que pode ser impulsionado e dinamizado pelas grandes religiões, nas quais se inclui, evidentemente, o cristianismo com a sua teologia e a sua espiritualidade”.
A todas e todos, ótimas leituras e reflexões.
Nossa primeira seleção de materiais remete à angústia ou alívio do isolamento social. Entremeia-se nessa condição um problema de ser, de compreensão da existência, própria, do Outro, da Sociedade. Compartilhamos centenas de páginas produzidas em nossos canais que propiciam novas interpretações e novos insights sobre a crise atual.
Imagem: Sasha Freemind/Unsplash
Convidamos para a leitura da Revista IHU On-Line Nº 181 “A Sociedade do Risco: o medo na contemporaneidade”. Com entrevistas especiais com Ulrich Beck, Zygmunt Bauman, Christophe Dejours e Jean Delumeau propomos um debate sobre a origem e a razão do medo na sociedade contemporânea. Para Urlich Beck “vivemos em um mundo fora de controle. Não há nada certo além da incerteza. Uma sociedade de risco”.
Para Bauman vive-se um medo constante, em diferentes níveis, por tudo que é incerto, de cair para fora da “crosta fina da civilização” ou de a civilização toda vir abaixo. “A ameaça da “descivilização” é assustadoramente real: ‘Remova os pontos elementares da vida organizada, civilizada – comida, abrigo, água potável, segurança pessoal mínima – e retrocederemos dentro de algumas horas ao estado hobbesiano de natureza, a guerra de todos contra todos’”, afirma o sociólogo, citando Timothy Garton Ash.
Na Revista IHU On-Line Nº 220 “O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?”, destacamos a entrevista com o psicanalista Alfredo Jerusalinsky, na qual levanta uma importante questão para esse tempo em que o confinamento individual é a resposta para a necessidade coletiva: qual o papel do Outro para o sujeito pós-moderno em sua busca do gozo de máxima intensidade? “A demanda social passou para um segundo lugar. De tal modo – no que se refere à autonomia – que ele mesmo perfaz seu próprio nome sem que o nome recebido do Outro tenha maior valor”, escreve Jerusalinsky.
A Revista IHU On-Line Nº 436 “O que devemos uns aos outros? O contrato social revisitado” convida para revisitar os diferentes teóricos do contratualismo, como Hobbes, Rousseau, Kant e Rawls.
No Cadernos IHU Nº 42 “Ética e Intersubjetividade: a filosofia do agir humano segundo Lima Vaz”, o filósofo e teólogo Antonio Marcos Alves da Silva percorre a obra de Henrique Cláudio de Lima Vaz contextualizando-a em uma sociedade caracterizada pelo “relativismo universal e individualismo sem limites, pela precariedade do reconhecimento da intersubjetividade e pela abrangência de uma crise de sentido e de valores, um imenso horizonte de questões e conflitos envolve o agir ético do ser humano, do homem”. Pelo pensamento de Vaz, Antonio procura responder “Como se podem construir comunidades éticas fundadas no reconhecimento de si e do outro? Como superar o individualismo? Como entender a intersubjetividade como forma de efetivação concreta do agir do sujeito no encontro com o outro?”.
Foto: Henk Sijgers | Flickr CC
Para alguns pensadores contemporâneos, os efeitos do isolamento podem acentuar esse individualismo. Essa perspectiva está no artigo “Com a reclusão compulsória, assistiremos a um fortalecimento do individualismo”, do sociólogo e antropólogo David Le Breton, publicado no sítio do IHU em 22-03-2020. Para ele, “nesse contexto de reclusão, a comunicação via internet ou smartphone invadirá o mundo e ajudará a destruir ainda mais a conversação, uma das formas fundamentais da humanidade. O outro também se torna um obstáculo, um perigo”.
O filósofo coreano Byung- Chul Han tem como um argumento central nas suas obras lançadas durante a última década que na atual sociedade de desempenho consolida-se a transição do sujeito imunológico para um sofredor de violência neuronal e imanente, isso é, um inimigo positivado no ser, e não mais externo. No entanto, no recente artigo "O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã," publicado pelo sítio do IHU em 23-03-2020, analisando as consequências do coronavírus, afirma: “Pois bem, em meio a essa sociedade tão enfraquecida imunologicamente pelo capitalismo global o vírus irrompe de supetão. Em pânico, voltamos a erguer limites imunológicos e fechar fronteiras. O inimigo voltou. Já não guerreamos contra nós mesmos. E sim contra o inimigo invisível que vem de fora”.
As interpretações para o confinamento são diversas. Na entrevista para o jornalista espanhol Jordi Évole, cuja os fragmentos foram publicados pelo IHU, o papa Francisco afirmou: “Hoje temos que resgatar a convivência, e esta será uma das conquistas a qual podemos chegar nessa tragédia muito triste, porém temos que recuperar a convivência humana, a proximidade”.
Para o psicanalista Massimo Recalcati, vive-se uma nova compreensão da fraternidade e solidariedade. “O coronavírus nos ensina o valor da solidariedade, expondo-nos à impotência inerme da nossa existência individual. Ninguém pode existir como um Ego fechado sobre si mesmo, porque minha liberdade sem o Outro seria vã”, afirma no artigo intitulado "A nova fraternidade" publicado no sítio do IHU em 16-03-2020.
A filósofa Michela Marzano compartilha desta perspectiva. Para ela, apesar das individualidades a fragilidade humana se manifesta de forma comum em tempos de coronavírus e para superá-la é necessário a solidariedade: "o verdadeiro desafio não é apenas isolar-se, mas proteger-se para proteger melhor os outros, as pessoas mais idosas, os mais frágeis. Isolar-se é um gesto de solidariedade". No artigo "Reclusão em tempos de coronavírus: 'Isolar-se é um gesto de solidariedade'", descreve que o isolamento exigirá criar novas condições de sociabilidade: "Ter que ficar em casa nos forçará a nos relacionarmos entre nós, o que achamos difícil de fazer na sociedade atual. É preciso estar, em primeiro lugar, em contato consigo mesmo para estar em condições de criar sociabilidade. Uma sociabilidade profunda e não apenas proximidade física".
A pandemia do coronavírus também resgatou em muitas reflexões a obra de Albert Camus, publicada em 1947, “A Peste”. Neste livro, Camus utiliza do termo “peste” para metaforizar o mal que era o nazismo, mas descreve, de forma ampla e adequada a diferentes situações, uma sociedade em pânico com o avanço crescente da doença. Nos artigos de Tahar Ben Jelloun, Rafael Narbona, Carles Casajuana e Matt Malone podem ser encontradas diferentes interpretações da obra para o momento atual.
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Diante da agonia, a relação do Eu e do Outro ainda remete à relação com Deus. Ele permitira uma nova peste? Ele permite o mal? Como encontrá-lo nesse momento? Essas questões são debatidas nos textos de James Martin, Victor Codina, Timothy Radcliffe, Thomas Reese e na entrevista com os teólogos Cettina Militello, Severino Dianich e Roberto Dell'Oro.
A pergunta, “Onde está Deus?”, foi feita em outros momentos trágicos da história da humanidade, como durante a Segunda Guerra Mundial. É uma “pergunta que sempre nos fazemos diante da dor inexplicável, das mortes inesperadas, dos infortúnios perenes”, como diz o escritor italiano Giorgio De Simone.
Em 2003, com a incipiente guerra no Oriente Médio entre as civilizações "ocidental cristã" e "oriental islâmica", a Revista IHU On-Line Nº 54 reuniu entrevistas com o rabino Henry Sobel e o jesuíta João Batista Libânio e artigos de Leonardo Boff e Jurgen Moltmann para debater a evocação a Deus em meio ao conflito armado.
Para o teólogo espanhol, Andrés Torres Queiruga, em entrevista concedida à IHU On-Line, as tragédias e as atrocidades não acontecem pela ausência ou silêncio de Deus, mas sim pela "surdez humana". Enzo Bianchi, monge, teólogo e prior da Comunidade de Bose, reforça essa ideia no artigo "As eternas perguntas da vida terrena: 'Onde está Deus? Onde está o ser humano?': "Deus fala também no silêncio, basta saber escutar o silêncio".
O padre italiano Enzo Fortunato questionou sobre o silêncio de Deus, em carta publicada pelo jornal Corriere della Sera, diante do terremoto que acometeu a Itália, em agosto de 2016, causando quase 300 mortes. Para Fortunato, o silêncio existe e nem sempre pode ser compreendido, mas Deus está naqueles "que não fogem e que respondem ao grito humano de dor e de desespero".
O cardeal Gianfranco Ravasi apresenta em entrevista a interpretação de um Deus presente também no sofrimento, pois "é Deus mesmo, em Cristo, que não só se curva sobre nós para nos explicar o significado do sofrimento, não só em alguns casos cura graças à sua onipotência com os milagres, mas também entra na nossa humanidade e prova toda a dor do homem. A dor física, moral, o medo, o silêncio do Pai".
Por fim, destacamos a passagem do grito de Jesus na Cruz, clamando pelo Pai que se silencia (Mc 15, 33-39), com as entrevistas com os teólogos Francine Bigaouette, Alexander Nava e Carlos Dreher, publicadas no Cadernos Teologia Pública Nº 89.
Para Dreher, Deus não abandona o sofrimento, porque, "em Jesus, Deus mesmo se entrega à morte, por nós. Jesus é verdadeiro Deus. Então isso significa que Deus mesmo está ali pregado, sofrendo. Neste sentido, ele grita junto com Jesus. Não silencia, mas sofre com aquele ser humano arrebentado".