18 Fevereiro 2020
"A tese simplista do crescimento econômico que garante o desenvolvimento é insustentável, uma vez que quase todos os países passaram recentemente por uma fase de expansão, mas sem resolver problemas como emprego formal, equidade ou industrialização. Hoje também é evidente que a própria ideia de desenvolvimento está esgotada. Tudo foi testado e o resultado final foi muito enxuto", escreve Eduardo Gudynas, uruguaio, analista do Centro Latino-Americano de Ecologia Social - CLAES. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O que pode ser interpretado como a confissão de uma derrota que afeta toda a América Latina passou quase despercebido. Há pouco se admitiu que todas as estratégias de desenvolvimento implementadas na região estão esgotadas. Não somente isso, mas sim que ainda todas elas fracassaram. Essa é a confissão da secretária-executiva da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal.
Apesar da gravidade da declaração, não se manifestaram nem os governos, nem a imprensa, nem os atores cidadãos diretamente vinculados ao tema do desenvolvimento. E mais, a secretária da Cepal, Alicia Bárcena, avançou mais afirmando que o extrativismo, ou seja, a exportação de matérias-primas, é o que está esgotado porque “concentra riqueza em poucas mãos e apenas usa a inovação tecnológica” [1].
Estamos diante da confissão da máxima autoridade do organismo econômico mais importante do continente, o que por um lado teria que ter contribuído para evitar esse fracasso, e pelo outro, ter assegurado o caminho para que eles concebessem um desenvolvimento virtuoso que reduz a pobreza e a desigualdade. Reconhecer que nada disso aconteceu é admitir que a Cepal não tinha estratégias realmente efetivas para esse propósito, ou se assumir que suas propostas eram as adequadas, então os governos seriam os culpados por não as ter seguido. Qualquer das duas possibilidades tem graves conotações.
É surpreendente que tal confissão passe despercebida. Teria que se perguntar se a secretária-executiva da Cepal reconhece isso em público porque todos já sabem disso e, como muitos são responsáveis de um modo ou de outro, ninguém se ofenderá, nem exigirá que se assumam as responsabilidades por esse fracasso. É que há um ar de fatalismo crescente no continente que se sente nestas e outras situações que fazem as estratégias de desenvolvimento.
Isso contrasta com o entusiasmo com que se discutia sobre o desenvolvimento no passado recente, tanto por políticos como acadêmicos e militantes. Desde o início dos anos 2000 proliferou na América Latina todo o tipo de ensaios sobre outros modos de organizar o desenvolvimento, incluindo mudanças no papel do Estado, a regulação dos mercados e as políticas públicas. Aquele ímpeto esteve diretamente associado com os governos progressistas, e à medida que esses definharam, as expectativas com suas versões de desenvolvimentismo também minguaram.
A Cepal navegou sob distintas tensões e ambiguidades frente aos ensaios desenvolvimentistas do século XXI. Nunca foi uma promotora entusiasta de algumas de suas versões, como a bolivariana, porém contribuiu ao legitimar os modos mais moderados, como o do Brasil de Lula. Não abandonou suas próprias propostas, como as que nos anos 1990 postulavam a “transformação produtiva” ou a inserção na globalização comercial. Mais além das ênfases, a Cepal se manteve fiel ao credo do crescimento econômico como motor indispensável do desenvolvimento, e colocava sua esperança em certas regulações para reduzir a pobreza e a desigualdade.
Assegurada a adesão ao crescimento econômico, fazem-se concessões que não o ponham em risco. Nisso está a origem da aceitação dos extrativismos.
De fato, a Cepal apoiou o concubinato dos extrativismos com todo tipo de planos e estratégias de desenvolvimento, conservador ou progressista, enfocando sobretudo em melhoras da gestão tecnológica (que foram os mais limpos), aumento do dinheiro arrecadado (que resultaram em mais benefícios econômicos), e que se apaziguasse o protesto cidadão (que fossem menos conflitivos). Tolerou os extrativismos apesar de isso ir contra as primeiras pregações cepalinas, que questionavam um desenvolvimento baseado na exportação de matérias-primas.
Por isso, é tremendamente chamativo que agora, em 2020, se reconheça que os extrativismos concentram a riqueza, apenas utilizam inovação tecnológica e são parte desse desenvolvimento que fracassou. Tudo isso é o que disseram às organizações cidadãs muitos políticos e acadêmicos, há mais de uma década, sem serem reconhecidos pela Cepal.
Pelo contrário, a comissão contribuiu para um nacionalismo dos recursos naturais, que sobretudo desde o discurso progressista insistia nas exportações de matérias-primas para assegurar o crescimento econômico, e desde ali aplicar os planos sociais. A discussão centrou-se, por exemplo, na arrecadação fiscal sobre os extrativismos e não no tipo de desenvolvimento que implicavam. Não se entendeu que esse modo de apropriação de recursos naturais tem impactos locais de todo o tipo, porém que, além disso, geram condições que impedem uma diversificação produtiva.
Como já se adiantou, essa situação é chamativa porque essa adesão aos extrativismos em certo modo contradiz o discurso inicial da Cepal a favor da industrialização e da autonomia comercial. Recordemos que o mandato fundacional da comissão, em 1948, e depois sob Raul Prebisch na década de 1950 e parte de 1960, defendia uma industrialização, a revisão dos termos de intercâmbio e inclusive um mercado comum continental. Não é que estavam contra grandes empreendimentos mineiros ou petroleiros, mas sim que consideravam como condição de atraso que esses servissem unicamente ao papel de provedores de matérias-primas para o mercado internacional. Os extrativismos, por outro lado, enfraquecem as opções para uma industrialização e ao mesmo tempo impõem subordinações no comércio externo, já que se deve aceitar todas as suas regras caso queiram seguir exportando matérias-primas.
Com o passar do tempo, a Cepal, pouco a pouco, se distanciou daqueles propósitos para atender outras prioridades no desenvolvimento. Por exemplo, as propostas cepalinas da década de 1990 de uma “transformação produtiva com equidade” somou um leque tão grande de metas, que várias delas terminaram sendo contraditórias entre si [2]. Por exemplo, sua adesão à globalização entorpecia sua proposta de industrialização, enquanto a insistência no crescimento econômico fazia impossível uma sustentabilidade real. O “regionalismo aberto” da Cepal acentuou esses problemas [3]. As propostas cepalinas nunca tiveram um conteúdo teórico, nem um apoio político, que permitisse atacar os obstáculos à industrialização ou a outra inserção comercial.
Mais recentemente parece que a Cepal se preocupa mais com o debate global sobre o desenvolvimento, como o que exemplifica a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável ou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Sem dúvidas, ninguém pode estar contra perseguir algumas das metas nessas plataformas, como assegurar o potável ou o saneamento, porém esses esquemas não suplantam nem resolvem as especificidades latino-americanas.
Então não pode surpreender que a Cepal tenha muitas dificuldades em lidar com a conjuntura atual e se sinta mais cômoda no passado recente. Lança múltiplos estudos sobre assuntos muito atuais, como o impacto da China no continente, porém ao mesmo tempo segue apontando o neoliberalismo das décadas de 1980 e 1990 como explicação dos problemas de hoje. É assim que quando Bárcena admite que a América Latina perdeu as opções de se industrializar, de promover a inovação e de reduzir a brecha de desigualdade (outra confissão demolidora), o explica culpando o neoliberalismo, que ao mesmo tempo se refere a Milton Friedman e ao Consenso de Washington.
Ao fazê-lo desse modo, é como se esquecesse que no século XXI a região passou por uma fase de fenomenal crescimento econômico e em vários países se desmontaram muitas daquelas reformas de mercado. Em suas explicações se esvanece a variedade de regimes políticos que se sucederam no continente, cada um com seu ensaio sobre o desenvolvimento, desde Nestor Kirchner na Argentina, a Juan Manuel Santos na Colômbia, ou desde Hugo Chávez na Venezuela à irrupção da extrema direita no Brasil. Qualquer análise do desenvolvimento atual requer analisar essas circunstâncias latino-americanas.
Do mesmo modo, não está nada claro se realmente se entendem todas as implicâncias que tem de confessar o esgotamento do programa extrativista em particular e do desenvolvimento em geral. Bárcena afirma que faz falta uma “volta estrutural do modelo” para reverter esse esgotamento. Esse é outro propósito compartilhável, porém a dúvida está em que entendem por “estrutural” e por mudança na Cepal. Uma reversão nas estruturas que resultam nas exportações de matérias-primas implicaria, por um lado uma desvinculação seletiva da globalização, e por outro uma integração regional dentro da América Latina ainda que sob outras premissas em organizar a industrialização. É necessária uma postura muito distinta frente à globalização, aos mercados globais e à sua institucionalidade, como os acordos da Organização Mundial do Comércio – OMC. A Cepal nunca avançou decididamente nesse tipo de questionamentos e alternativas, e por isso não está claro quão estrutural é a mudança que pregam.
O que diriam os fantasmas de Prebisch e seus colegas daquela Cepal se soubessem que hoje se reconhece que todas as opções de desenvolvimento falharam? O que sentiriam ao descobrir que as matérias-primas ainda são os principais itens de exportação da América Latina? Como reagiriam observando a sucessão de planos de industrialização que não consolidam?
Essas e outras questões são válidas porque a aparência desse estruturalismo inicial e os debates sobre o desenvolvimento de cunho prebischiano sempre criticaram a dependência de exportar matérias-primas típicas de extrativismos. Mais uma vez eles tentaram fugir desse vício.
Não se pode negar que a situação atual na América Latina é muito diferente da de 1948, quando foi criada a Cepal. Portanto, é compreensível que as propostas atuais sejam diferentes às daqueles anos. Da mesma forma, as ideias de Prebisch da época, focadas em um “desenvolvimento interior”, não podem ser transferidas para o presente como um todo, embora muitas de suas contribuições ainda sejam válidas, e várias daquelas que foram descartadas mereciam ressuscitar. Também não se pode esquecer que o próprio Prebisch atualizou suas concepções de desenvolvimento, como fez em 1981 em um de seus últimos livros, “Capitalismo Periférico” [4].
Mas faltam atitudes como as de Prebisch e sua equipe naquela Cepal, avançando em análises críticas e rigorosas, independentes, mas ao mesmo tempo comprometidas com a América Latina, e focadas em buscar alternativas. Prebisch disse em 1963: “A propensão a importar ideologias ainda é muito forte na América Latina, tão forte quanto a propensão dos centros em exportá-las” e, para ser mais claro, ele acrescentou: “isso é um resíduo claro dos tempos de crescimento”. Ele não rejeita a contribuição de outras áreas e regiões, mas insistiu que "nada nos isenta da obrigação intelectual de analisar nossos próprios fenômenos e encontrar nossa própria imagem no esforço de transformar a ordem existente das coisas" [5].
Essa “antiga Cepal” produziu novas ideias como respostas aos problemas mais agudos de sua época, e muitas delas eram muito incisivas e, portanto, resistiram. Os governos não eram indiferentes, alguns os rejeitaram, outros tentaram aplicá-los à sua maneira. Havia uma visão, uma aspiração e até um sonho de uma grande narrativa de mudança, o “compromisso” de transformar a ordem atual, e é essa disposição que desaparece ao longo dos anos.
É essa posição, essa intransigência na busca do próprio caminho, que é mais necessária hoje, pois se reconhece que a própria ideia de desenvolvimento está em crise. Não apenas a concepção de crescimento econômico perpétuo entrou em colapso, mas também arrastou a categoria de desenvolvimento. A confissão mostra que a Cepal, de alguma forma, a entende, e certamente muitos também a compreendem em alguns governos latino-americanos. A tese simplista do crescimento econômico que garante o desenvolvimento é insustentável, uma vez que quase todos os países passaram recentemente por uma fase de expansão, mas sem resolver problemas como emprego formal, equidade ou industrialização. Hoje também é evidente que a própria ideia de desenvolvimento está esgotada. Tudo foi testado e o resultado final foi muito enxuto.
Esse reconhecimento seria uma oportunidade notável para abordar outros tipos de alternativas que estão localizadas além do desenvolvimento. Mas como todos são mais ou menos responsáveis por esse esgotamento, parece que as barreiras que impedem essa etapa continuam a operar. Pode ser necessário resgatar os fantasmas de Prebisch do esquecimento para, como ele disse, “encontrar nosso próprio caminho”.
[1] América Latina ha perdido el tren de la política industrial y la innovación, I. Fariza entrevista a A. Bárcena, El País, 7 febrero 2020.
[2] CEPAL. La transformación productiva con equidad. La tarea prioritaria del desarrollo en América Latina y el Caribe en los años noventa. Santiago, 1990.
[3] CEPAL. El regionalismo abierto en América Latina y el Caribe. La integración económica al servicio de la transformación productiva con equidad. Santiago, 1994.
[4] PREBISCH, R. Capitalismo periférico. Crisis y transformación. México, Fondo de Cultura Económica, 1981.
[5] Hacia una dinámica del desarrollo latinoamericano. R. Rebisch. México, Fondo de Cultura Económica, 1963 (2da ed., 1971), pág. 20.
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O esgotamento do desenvolvimento: a confissão da Cepal. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU