13 Fevereiro 2020
A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte é o dispositivo narrativo de Sequestrada (2019), primeiro longa-metragem da cineasta e socióloga americana Sabrina McCormick, em parceria com o sul-coreano Soopum Sohn. O filme, que estreou no último mês de dezembro nas plataformas de streaming Itunes, Vudu, Vimeo, Amazon e Google Play, conta a história da jovem indígena Kamudjara (a atriz Kamudjara Xipaia) em meio às disputas e expectativas sobre as profundas mudanças sociais e ambientais resultantes do empreendimento. A diretora acredita que o cinema tem papel fundamental na disseminação da reflexão sobre as temáticas ambientais, que são seu objeto de estudo há mais de vinte anos.
Professora associada do Departamento de Saúde Ambiental e Ocupacional da Escola de Saúde Pública do Instituto Milken, na Universidade George Washington, McCormick foi consultora do Congresso e do Departamento de Estado americano, atuando em comitês climáticos durante o governo Obama. Nesta entrevista à Mongabay, ela conta sobre o processo criativo, a experiência de filmar na Amazônia e as percepções que teve dos aspectos sociais, culturais e de pertencimento ligados à floresta. Ressalta, ainda, a importância de se barrar o avanço de modelos de geração de energia baseados em obras como Belo Monte.
A entrevista é de Débora Pinto, publicada por Mongabay, 11-02-2020.
Por que você escolheu fazer cinema na Amazônia – e especificamente sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte?
Eu estudo políticas ambientais há aproximadamente 20 anos, com foco na questão energética e nas mudanças climáticas. Durante meu doutorado eu passei um período na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e acompanhei mais de perto como estava acontecendo o debate público sobre a construção da usina.
Algo que me chamou a atenção foi perceber que um empreendimento daquela dimensão, no meio da Amazônia, não era visto como positivo pela população, e mesmo assim seria construído. Tratava-se de uma obra gigantesca, planejada para ser a quarta maior usina hidrelétrica do mundo, parte de um conjunto de outras grandes usinas na floresta como Balbina [no Amazonas] e o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira [composto por duas usinas de grande porte: UHE Jirau e Usina Hidrelétrica Santo Antônio, em Rondônia].
Eu faço cinema para que o conhecimento ao qual eu tenho acesso chegue a mais pessoas, então entendi que esse era um assunto realmente importante – não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro, já que a degradação da Amazônia tem impacto direto nas mudanças climáticas.
Apesar dessa visão global, sua escolha narrativa destaca personagens locais, inclusive com a atuação de moradores da região de Altamira (PA), que fica nas proximidades da usina. Por que essa escolha?
Nós contamos com o apoio de várias organizações locais e, desde o início, quando começamos a criar a história, eu entendia que, mesmo não fazendo um documentário, era importante mostrar as experiências de quem estava sofrendo de maneira mais direta. Também sabia que estávamos falando de um território que, além de ser rico em biodiversidade, tem uma realidade social complexa. Isso não podia ser ignorado. Escutar os indígenas e outros moradores da região foi muito importante para a construção do roteiro e de todo o filme.
Quais foram os principais aprendizados desse processo?
Eu aprendi muito mais do que eu imaginava. Pude perceber detalhes de como funcionavam as negociações ali, as distâncias – para chegar a algumas aldeias levava-se mais de seis dias de barco – e a relação que era estabelecida com a floresta. Os sentimentos que os locais expressavam me fizeram compreender que era o mundo daquelas pessoas que estava sendo destruído. Eu, como americana, tenho um sentimento diferente quando falo a palavra “casa”. É claro que sei o que é ter uma ligação com o lugar de onde se veio, ou com a sua comunidade. Mas o que eles sentiam estar perdendo era muito maior do que isso.
Nós tivemos ainda que aprender a lidar com o clima de tensão que se fazia muito presente. Começamos a visitar Altamira em 2015 e você percebia que Belo Monte era um assunto discutido em todos os lugares, até quando a gente sentava para comer em um restaurante. Acompanhamos uma assembleia pública com 15 povos indígenas que eram contra a usina. Desisti de realizar a cena de um protesto fictício porque eram tantos os protestos reais ocorrendo que poderíamos nos envolver em algum tipo de tumulto. Eu acho que filmar na Amazônia, comunicar o que acontece lá, é realmente desafiador. Mas o fato de ser estrangeira fazia com que eu me sentisse mais segura em comparação aos ambientalistas brasileiros, que sofrem muita violência.
Por que uma menina indígena de 13 anos como protagonista?
Eu queria que essa personagem central fosse uma menina indígena. Em primeiro lugar, porque eu penso que precisamos ter mais presença feminina nos filmes de modo geral. Acredito que é uma forma de dar importância para um certo tipo de experiência que é delicada e, ao mesmo tempo, tem o poder de gerar conexão emocional com quem está assistindo. Outro fator importante é que, naquele contexto, a personagem está passando por um momento de grande vulnerabilidade. Para mim ela é uma representação da própria floresta.
Outro personagem central é um controverso funcionário da Funai. Sua intenção foi fazer algum tipo de crítica à instituição?
Foi uma decisão difícil a de manter o personagem Roberto [interpretado pelo ator brasileiro Marcelo Olinto], um agente da Funai que vai negociar com os indígenas e estabelece uma relação de proximidade com Kamudjara, porque sabia que poderia gerar polêmica. Particularmente, eu vejo que a instituição tem um trabalho importante na luta pelos povos indígenas. Mas, ao mesmo tempo, as decisões que eu vi sendo tomadas em relação a Belo Monte não me pareceram verdadeiramente favoráveis a essa população. Não é uma crítica a um órgão em si, mas a todo um sistema que permite que obras como esta continuem avançando. Há outra coisa que é importante perceber: Roberto tem um afeto real por Kamudjara e daí vem, por exemplo, sua intenção de levá-la para viver no Rio de Janeiro em um certo momento da trama. Ele sabia quais seriam as consequências para ela e sua tribo e, em seu entendimento, esta seria uma oportunidade real de melhoria de vida para ela.
Com a experiência dos seus estudos e da produção de Sequestrada, como você enxerga o futuro da conservação na Amazônia?
Infelizmente ainda é preciso progredir muito nas políticas e na conscientização para que o modelo que leva a obras de usinas de grande porte na floresta deixe de ser naturalizado. Eu sinto muita tristeza quando vejo, por exemplo, o governo americano fechando acordos de colaboração em infraestrutura com o Brasil sem nenhum tipo de responsabilidade com a conservação. Mais do que nunca é necessário que saibamos para onde vai cada dólar investido e que lutemos para modificar esse cenário porque, senão, em pouco anos teremos uma floresta amazônica completamente modificada, gerando um desequilíbrio ambiental e social de consequências desastrosas para o Brasil e para o mundo.
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Cineasta americana relata desafios para realizar filme sobre a construção de Belo Monte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU