11 Dezembro 2019
Em exclusiva para o Vatican News, o subsecretário de Seção de Migrantes e Refugiados do Dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral conta a experiência de sua família durante a Segunda Guerra Mundial. Cardeal desde 5 de outubro de 2019, ele escolheu como brasão a imagem de um barco com quatro pessoas: um reflexo de sua história e do compromisso a que é chamado.
A entrevista é de Johanna Bronkova e Emanuela Campanile, publicada por Vatican News, 07-12-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Imagem ilustra "A fuga do Egito"
Foto: Vatican News
A fé, as origens judaicas, a prisão de sua mãe em um campo de concentração nazista, a guerra, a fuga para o Canadá e o retorno à Tchecoslováquia para redescobrir a terra natal e a coragem de uma Igreja capaz de não se desintegrar durante os anos do comunismo. Em uma entrevista realizada pela redação tcheca do Vatican News, o cardeal Michael Czerny fala de sua história repercorrendo os momentos mais importantes e muitas vezes dramáticos de sua vida e de seus pais, que "raramente falavam" dos anos vividos durante a Segunda Guerra Mundial. Um silêncio devido à dor de uma história pessoal que temiam pudesse ser mal interpretada, mas também pela decisão de empenhar-se plenamente em construir uma nova vida no Canadá. Entre as lembranças do subsecretário, a pintura em vidro da "Fuga para o Egito" realizada pela avó também inspirou a escolha da imagem-lembrança para o dia da nomeação como cardeal.
"Meus pais moravam na Morávia. Minha mãe, Winifred Hayek Czerny, passou vinte meses na prisão e no campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Ela também foi obrigada a trabalhar como trabalhadora agrícola. Embora nascida e criada por pais católicos romanos, seus avós nasceram judeus e foi classificada como judia pelas autoridades nazistas que governavam o chamado protetorado da Boêmia e da Morávia em março de 1939. Meu pai, Egon Czerny, também era católico romano; não tendo descendência judaica, foi poupado do campo de concentração; foi colocado no campo de trabalho forçado da Postoloprty nos últimos oito meses da guerra, devido à sua recusa em se divorciar de minha mãe enquanto ela estava internada em Terezín".
Como sua mãe avaliava ter sido uma sobrevivente do Holocausto?
Minha mãe nunca se considerou nesses termos porque o Holocausto é atribuído à comunidade judaica, enquanto ela se identificava como católica romana. Sua atitude era considerar-se uma pessoa que teve a sorte de sobreviver à loucura assassina de um regime que não tinha razões legítimas para perseguir e executar alguém apenas por sua origem. Quando voltou a Terezín, em abril de 1995, escreveu no livro de visitas do museu: "Eu sobrevivi". De fato, ela sobreviveu a um mal monstruoso que aprisionou seres humanos, cada qual único em seu ser, e os tornou anônimos, primeiro reduzindo-os a números e depois transformando-os em cinzas, em pós com gás e fogo. Com sua arte, minha mãe reverteu esse mal. Do pó ou da argila, esculpiu a figura de muitas pessoas vivas, figuras que durarão muito tempo, muito além da vida normal de um ser humano, porque, ironicamente, foram cozidas em um forno. Nossa família doou três de suas esculturas, incluindo uma que me retrata, ao museu de Terezín.
E é nesse ponto que o cardeal se lembra de sua avó materna, Anna Hayek, de grande veia artística. Entre suas obras, também aquela pintura em vidro da "Fuga para o Egito". Embora católicos, com o marido Hans e os dois filhos, foram internados no campo de concentração de Terezin devido às origens judaicas de seus ancestrais. Ela morreu em Auschwitz algumas semanas após o fim da guerra, o resto da família muito antes. Czerny então retorna aos anos da grande decisão de seus pais: deixar a Europa e se mudar para o Canadá. A hora do desafio, do planejamento, de projetos que desaparecem e da escolha de seguir em frente e atravessar a imensidão de um oceano para recomeçar. Estes são os anos entre 1946 e 1948, a primeira data corresponde ao nascimento do cardeal, a segunda ao de seu irmão. Finalmente, no Canadá, há alguém disposto a se responsabilizar pela família Czerny, apesar da incerteza de encontrar um emprego. É uma família que os ajuda a entrar no país:
"Essa família nos acolheu e nos guiou no difícil processo de adaptação a uma nova cidade antes de aprender a língua, conhecer sua cultura, hábitos, ganhar a vida, superando finalmente as barreiras étnicas e fazer amigos ... mas continuando a viver na língua e cultura que trouxemos conosco".
Tendo se tornado adulto, ele retornou à Tchecoslováquia de meados de outubro de 1987 a meados de janeiro de 1988 para "explorar a terra do meu nascimento e fazer uma experiência direta de vida sob o comunismo". Em Brno, ele conhece os representantes daquela Igreja do Silêncio, que entrará na história por ajudar a derrubar o muro da vergonha que sem escrúpulos havia cortado o mundo em dois.
"Em todos esses encontros, fiquei impressionado com a coragem e a fé daqueles que mantiveram acesa a chama da fé cristã e abriram o santuário da vida eclesial durante os anos comunistas. Ninguém imaginava que poucos meses depois haveria uma grande mudança!"
Com um salto no tempo que apenas as palavras podem realizar, chegamos a 2017, ano em que Michael Czerny se torna um dos dois subsecretários da Seção do Vaticano para migrantes e refugiados e a nomeação como cardeal de 5 de outubro de 2019:
Você pode explicar o significado do brasão cardinalício que escolheu?
Para refletir esse ministério e a minha experiência de vida, meu emblema mostra um barco com uma família de quatro pessoas - refugiados e outras pessoas em movimento costumam estar em barcos. Minha família de quatro pessoas chegou ao Canadá de barco, assim a água debaixo do barco me lembra o Oceano Atlântico. O barco também é uma imagem tradicional da Igreja como o Barco de Pedro, que tem o mandato de Nosso Senhor de "receber o estrangeiro" (Mateus 25:35), independentemente de onde a Igreja esteja. Além disso, como símbolo do movimento L'Arche, o barco recorda as obras de misericórdia para com todos aqueles que são excluídos, esquecidos ou desfavorecidos. O sol dourado acima do barco é o selo da Companhia de Jesus - os jesuítas. E o fundo verde é um lembrete da encíclica do Papa Francisco Laudato si’, que convida todos nós a cuidar do bem-estar da criação, a nossa casa comum.
Brasão do cardeal Czerny
E o seu lema?
Meu lema em latim é "Suscipe", a primeira palavra e título da oração que Santo Inácio coloca na contemplação final dos Exercícios Espirituais, ou seja, a contemplação para alcançar o Amor de Deus. Assim, com a única palavra "Suscipe", entendo evocar toda a oração de doar-se totalmente a Deus, como é a espiritualidade de ser cardeal. Em sua carta aos novos cardeais de outubro de 2019, o Papa explicou o que isso realmente significa: "A Igreja pede uma nova forma de serviço - disse ele - um chamado a um maior sacrifício de si e um testemunho coerente de vida". E as vestes escarlates representam o derramamento de sangue - usque ad effusionem sanguinis - em total lealdade e fidelidade a Cristo.
Também sua cruz peitoral é muito particular. É feita de madeira ...
Foi feito pelo artista italiano Domenico Pellegrino. Ele pegou a madeira dos restos de um barco usado pelos migrantes para atravessar o Mediterrâneo do norte da África, na tentativa de chegar à ilha italiana de Lampedusa. O material escolhido sugere a madeira da cruz na qual Jesus foi crucificado, o Filho de Deus, "para tirar os pecados do mundo". O prego é original, lembra-nos claramente que Jesus foi pregado na cruz; o brasão jesuíta inclui os três pregos tradicionais. A madeira pobre sugere o voto jesuíta de pobreza e o desejo de uma Igreja humilde e comprometida. A origem da madeira reflete a fuga de minha família e minhas responsabilidades atuais na Seção Migrantes e Refugiados. As rachaduras na tinta vermelha e na madeira lembram as feridas, o sofrimento, o sangue derramado na crucificação e quando o mundo esquece a compaixão e a justiça, enquanto a cor mais clara - na parte superior - sugere a ressurreição de nosso Senhor e Salvador e a plenitude da vida que ele veio trazer.
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Cardeal Czerny: minha família como a pintura da Fuga para o Egito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU