12 Novembro 2019
"O PT precisa se libertar do século XX. Precisa se libertar da proposta de ampla conciliação de classes que desarmou a militância social do país e a fez refém da lógica das agências estatais federais: cada movimento vinculado aos protocolos de um ministério, um banco público ou um fórum patrocinado pelo governo federal", escreve Rudá Ricci, em post publicado na sua página do Facebook, 09-11-2019.
Segundo o cientista social, "O lulismo gerou os Príncipes da República, os deputados federais que passaram a exercer a função de facilitadores cartoriais, promovendo os acessos de prefeitos aos programas e fundos federais. O baixo clero não teve a projeção que teve nos anos de lulismo por obra do Espírito Santo. Foi obra do lulismo. Talvez, um efeito colateral não planejado, mas com efeitos devastadores à nossa democracia em construção".
Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É presidente do Instituto Cultiva, cujo programa Comunidades Educadoras que criou acaba de receber distinção da Unesco como programa educacional mais exitoso do Brasil, figurando entre 16 experiências exitosas do mundo. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), e Conservadorismo político em Minas Gerais: os oito anos de governo Aécio Neves (Editora Letramento, 2017), entre outros
Antes da campanha eleitoral de 1989, era comum dirigentes petistas reproduzirem uma ideia central de Gramsci: “podemos ser poder sem ser governo”. Esta orientação conduzia ao trabalho nos grotões e periferias do país, não nos parlamentos, palácios e sedes de empresas. A questão central era dialogar, ouvir, agregar demandas e pensamentos populares e convencer a partir de uma plataforma em que a maioria excluída se percebesse nela.
Em 1989, durante a campanha, era esta a “mística” que fazia com que servidores públicos panfletassem as ruas em seu horário de almoço; que padres e freiras percorressem as comunidades periféricas ou rurais falando da possibilidade de não termos medo de ser feliz. Não havia muito dinheiro. Quem coordenava a elaboração do programa de governo de Lula percorria o país para ouvir movimentos sociais, pesquisadores, ativistas, dirigentes sindicais, igrejas, num périplo quase missionário.
Construir um programa nacional - era a crença - não deveria ser produção de alguns iluminados, mas de ampla e quente discussão. Contudo, já em 1989 aparecia um desvio desta concepção: tudo o que se produzia como proposta de governo passava por uma triagem do “núcleo de economistas”. Ora, o Papa Francisco vem alertando – assessorado pelo Prêmio Nobel Amartya Sen – que há tempos a economia é pensada pelos economistas como técnica, não como projeto ético. Tanto que a articulação mundial liderada pelo Papa, a Economia de Francisco, sugere a mudança dos currículos das faculdades de economia de todo o mundo. Mas, no PT, era assim que se organizava, ainda caudatário do modo verticalizado de fazer política daquele século XX.
A grande mudança veio em 1994. Naquele momento, o PT mudava de rumo. Os marqueteiros entravam em cena “ombro a ombro” com o “núcleo dos economistas”. A triagem passava a ser feita pelos formuladores de um discurso mais palatável ou fácil. Não se tratava mais de convencimento, mas de ajuste. O que, na prática política, significa capitular ao desejo do outro, não mais dialogar ou convencer. A ação pedagógica da política de esquerda se pingava pelos dedos. 1998 e 2002 apenas consolidaram esta forma de fazer política. E o PT se acorrentou.
A questão é que ao se focar no “discurso fácil”, o que importa é falar o que o outro já fala ou que está preso na garganta. Não é exatamente formular uma proposta que tente mudar o que o outro já pensa. A política é a arte do convencimento – da escuta, mas também da fala – e não a arte da venda comercial onde o cliente tem sempre razão. Esta concepção da política ser um mercado é típica do pensamento liberal, onde o representante se posta em uma dimensão diferente da do eleitor. Ele é um profissional e nós, cidadãos passivos, esperando Godot.
Este alinhamento com a lógica de marketing levou o PT à conciliação. Tudo se ajustou a partir daí: do governo de ampla coalizão (o governo “omnibus”) aos programas focalizados (para atender cada clientela), ao jeitinho amoroso ao republicanismo, à leitura rasa da tal correlação de forças desfavoráveis à aceitação dos acordos com os setores mais atrasados e oligárquicos de nossa política. O PT aprendeu a vencer. Venceu quatro vezes seguidas uma eleição nacional, fato inédito na história de nosso país. E venceria a quinta, caso o julgamento do STF desta semana tivesse ocorrido no ano passado.
O PT, enfim, inverteu a frase de Gramsci: “podemos ser governo sem ser poder”. O que desmontou o espírito de garra de sua militância, substituindo-o pela idolatria. A idolatria, como se sabe, é a transferência que eu, idólatra, faço a outro por não considerar que eu tenha força e capacidade de fazer o que penso ser certo. É o outro, que se apresenta forte e capaz, que fará por mim. Por este motivo que as vitórias do ídolo são minhas vitórias e suas derrotas são tão demolidoras, porque minha esperança se desfaz. Este, talvez, seja o principal motivo para o derrotismo campear entre petistas desde 2015: Dilma perdeu o governo (o que sugeriu que o poder dos outros era muitas vezes maior que o dos pobres petistas) e seu ídolo foi preso. A sensação de impotência foi confirmada já que aquele que vencia pelos excluídos havia sido derrotado. Algo anos-luz da garra vista nas ruas do Chile e Equador.
O PT vive este dilema.
Circula pelas redes sociais que Lula teria dito a um líder do MST que abandonaria a conciliação ampla com quem não perdoou sua liderança e seu programa reformista. “Saio da prisão mais à esquerda”, teria dito a maior liderança política do país. Não há sinalização alguma de que este discurso pode se confirmar na prática. Ontem mesmo, ainda em Curitiba, Lula insistiu que o amor é maior e sempre vence, além de afirmar que não tinha mágoas. É verdade que desferiu um golpe rápido e profilático na “parte podre” do ministério público, da polícia e receita federais. Mas, nem de longe foi sua tônica. A atual direção do PT se embalou no “Lula Livre”, uma campanha que não se forja como bandeira política, que mobilize a sociedade em função de uma utopia. As direções petistas estão desarmadas. Não têm uma análise da realidade que aponte prioridades. Muito menos uma leitura sobre as novas formas de organização social, as novas demandas, que esboce como lidar com a profunda fragmentação social e as ações provisórias, com a crise de representação política formal de um mundo que já se vai, mas que parece ainda prender o ideário dessas direções.
O PT precisa se libertar do século XX. Precisa se libertar da proposta de ampla conciliação de classes que desarmou a militância social do país e a fez refém da lógica das agências estatais federais: cada movimento vinculado aos protocolos de um ministério, um banco público ou um fórum patrocinado pelo governo federal. O lulismo gerou os Príncipes da República, os deputados federais que passaram a exercer a função de facilitadores cartoriais, promovendo os acessos de prefeitos aos programas e fundos federais. O baixo clero não teve a projeção que teve nos anos de lulismo por obra do Espírito Santo. Foi obra do lulismo. Talvez, um efeito colateral não planejado, mas com efeitos devastadores à nossa democracia em construção.
Enfim, a campanha interna que o PT poderia promover – para que nós, progressistas e de esquerda, possamos ter algum vislumbre de uma ação ofensiva do nosso campo a partir de agora – é o “PT Livre”. Livre do liberalismo que o tomou pelas bordas, livre do viés marqueteiro do eterno posicionamento da marca, livre dos acordos de cúpula (em detrimento dos acordos de base). Quem sabe, por aí, o PT não volta a liderar “os de baixo contra os de cima”?
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