28 Outubro 2019
As expectativas frustradas e a insatisfação com os políticos dinamitaram a paciência de milhões de pessoas e explicam os protestos que ocorrem de norte a sul da região.
A reportagem é de Javier Lafuente, publicada por El País, 27-10-2019.
Protesto no Chile. (Reprodução: Twitter)
As expectativas frustradas dinamitaram a paciência de milhões de latino-americanos. Os protestos na região mais desigual do planeta se repetem num ritmo vertiginoso, do Haiti ao Chile; da América Central aos Andes. Buscar uma explicação simples para uma região como duas dezenas de países e mais de 600 milhões de habitantes seria ilusório, apesar do empenho de muitos em tentar construir uma espécie de primavera latino-americana — num continente onde, como se não bastasse, as estações brilham por sua ausência — ou armar um complô orquestrado pela Venezuela, que, apesar de mal poder se manter de pé, agora teria a capacidade de desestabilizar quase todo o continente. A frustração de milhões de desejos, o questionamento de modelos econômicos como o neoliberalismo e o desencanto com os políticos, sem importar a ideologia, são combustíveis comuns em todos os países para acender as labaredas que não parecem dispostas a se apagar no curto prazo.
A América Latina é um caldeirão de protestos num mundo que se tornou uma “cartografia a ser decifrada”, nas palavras do jornalista e historiador Pablo Stefanoni. Em alguns casos, porque a qualidade de vida piora, como na Argentina e no Equador; também no Chile e, há anos, no Brasil, onde também foram frustradas as expectativas de uma classe média à qual se incorporavam cada dia mais pessoas.
As mobilizações desses países, e as menos midiáticas dos estudantes da Colômbia e as do Haiti, não podem ser entendidas se não olharmos também para os coletes amarelos franceses, os protestos de Hong Kong e, mais recentemente, os do Líbano. Mas as explosões sociais fazem parte da paisagem política latino-americana há décadas e viveram seu auge no final dos anos noventa e início deste século. “Há toda uma cultura de mobilizações que funciona como um mecanismo de pressão para exigir a ampliação de direitos e uma redução das históricas injustiças sociais”, explica Luciana Cadahia, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados Latino-Americanos nas Humanidades e Ciências Sociais (CALAS-Andes).
Os protestos atuais surgem num contexto de desaceleração e crise econômica. A América Latina saiu praticamente ilesa da crise global de 2008, mas agora é a região mais atingida. Segundo as previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI), organismo que, por outro lado, volta a estar na mira de quase todos os protestos, a região crescerá 0,2%, quase nada na prática. Em menos de um ano, a previsão caiu de 1,4% para 0,6% (há 90 dias). Ao mesmo tempo, espera-se que as economias asiáticas cresçam em média 5,9% e as africanas, 3,2%.
Embora cada país tenha suas características específicas, o fim do auge das matérias-primas (commodities) sobrevoa a incerteza econômica. “Em algumas partes, o que se esgota é o neoliberalismo; em outras, os projetos nacionais-populares têm um problema de fundo que a região não pode abordar, que é o modelo de desenvolvimento. Inclusive na guinada à esquerda, os avanços foram redistributivos, políticas sociais que democratizaram o consumo. Não houve mudanças profundas, nem econômicas nem institucionais”, afirma Stefanoni.
A desigualdade de renda diminuiu desde 2000, mas hoje um em cada 10 latino-americanos (10,2%) vive na extrema pobreza. Em 2002, havia 57 milhões de pessoas em situação de carestia extrema na região. Quinze anos depois, a cifra subiu para 62 milhões. Em 2008 foram 63 milhões, segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal). “Um dos denominadores comuns são as expectativas frustradas, a precariedade das pessoas que haviam recuperado algo e que agora veem como os seus desejos e sonhos se perdem. Isso exacerbou uma enorme fúria”, diz Arturo Valenzuela, subsecretário de Estado para América Latina durante a Administração de Barack Obama.
“Os atuais protestos populares estão muito vinculados com o modelo econômico que, desde os anos noventa, tentam implementar uma e outra vez na região”, diz Cadahia, que, como outros analistas consultados, vê nos diferentes tipos de ajustes dos Governos um dos denominadores comuns dos protestos. “Os Estados têm o papel de proteger um modelo econômico que não gera fontes de trabalho nem necessita diminuir lacunas de desigualdade. De modo que deixam de investir em aspectos fundamentais como a educação e a tecnologia. As instituições se deterioram, as desigualdades crescem, e cada cidadão começa a sentir o mal-estar quando descobre como piora sua a vida cotidiana, o seu dia a dia.
” Nesse sentido, a acadêmica e feminista cubana Ailynn Torres considera que as manifestações “arremetem contra a ordem da desigualdade, que os governos do ciclo progressista anterior não desativaram de forma efetiva, e da pobreza —que de fato diminuiu no ciclo anterior, mas que voltou a crescer progressivamente depois de 2008, e de forma muito acelerada após 2015”, afirma a pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).
A autoridade da classe política ficou em evidência nas últimas semanas, ainda que a demanda por novas lideranças venha se manifestando há meses, ou mesmo anos. A fonte de instabilidade é total, como ilustra Stefanoni. “No Chile, menos de 50% dos eleitores votaram na última eleição; na Bolívia, metade do país acredita que houve fraude no pleito; no Equador, o sucessor de [Rafael] Correa deu uma guinada significativa em suas alianças e discursos ideológicos; no Brasil, as pessoas votaram com um dos favoritos (Lula) preso e acusado de corrupção; no Peru, todos os presidentes acabaram na cadeia pelo caso Odebrecht, e um se suicidou".
Não se trata de interpretar, pois, o mal-estar no eixo esquerda/direita. O último Latinobarômetro já apontava nessa linha. Para 75% das pessoas, há uma percepção de que se governa para poucos e que os Governos não defendem os interesses da maioria. Segundo o estudo, apenas 5% consideram que existe democracia plena; 25% acham que há pequenos problemas; 45%, grandes problemas; e 12% acreditam que não se pode chamar de democracia o que se vê hoje em dia. Além disso, a média de quem considera democrática a América Latina é de 5,4 numa escala de 1 a 10.
O desprestígio dos governantes não significa necessariamente um desencanto com a política, pois as sociedades latino-americanas estão mais do que politizadas. Valenzuela destaca a necessidade de implementar uma série de reformas políticas que ainda não foram conseguidas. “Há presidentes que são minoritários e se acham majoritários, que não têm depois o apoio do Congresso. Tudo isso gera uma paralisia e uma crise de representação”, explica o ex-funcionário do Governo dos EUA.
Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, sente que “os números contam uma história e as elites econômicas e políticas estão contentes com esses números, mas a experiência das pessoas é outra”. Stuenkel cita como exemplo os protestos de 2013 no Brasil, muito similares em sua origem aos do Chile da semana passada. “O que vimos é uma consequência de uma sociedade muito desigual, não só do ponto de vista econômico. É preciso ver por onde se movem as elites, com quem se relacionam. Também é preciso lembrar que a elite intelectual —jornalistas, analistas, entre os quais me incluo— não antecipou isso. É uma prova de que a elite financeira, política e intelectual da América Latina não tem sido capaz de monitorar e entender o que acontece na sociedade”.
O exemplo mais paradigmático desse distanciamento —além da cegueira autocrata de Nicolás Maduro, que tende a negar a realidade há anos— talvez tenha sido dado nos últimos dias pelo presidente do Chile. Sebastián Piñera passou de uma situação em que celebrava o oásis no qual seu país (supostamente) estava para outra em que a panela de pressão explodia. Após dizer que estavam em guerra contra um inimigo todo-poderoso, ele saudou as manifestações que, justamente, exigem sua renúncia e a de todos os seus ministros. Ailynn Torres, em consonância com outros analistas e acadêmicos consultados, mostra-se cautelosa em relação ao que virá. “Os resultados são incertos e talvez não sejam muito mais claros quando a etapa aguda terminar. O que está em jogo vai muito além; os povos sabem disso, e os Governos também".
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A desigualdade mobiliza a América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU