26 Outubro 2019
“A construção de uma democracia sustentável no Chile, inevitavelmente, deve deixar para trás tanto o neoliberalismo como o estadocentrismo proposto por boa parte das esquerdas e progressismos atuais, buscando outras formas de organização e de nos relacionar horizontalmente, caso contrário, repetirá os mesmos erros e horrores do passado, só que desta vez no marco de uma crise climática, que pela primeira vez está colocando em risco nossa sobrevivência no planeta”, escreve Andrés Kogan Valderrama, sociólogo e editor do Observatório Plurinacional de Águas no Chile. A tradução é do Cepat.
Pelo modo como o governo de Sebastián Piñera decidiu militarizar o país, com o estado de exceção, a aplicação da lei interna de segurança e o toque de recolher do Estado, baseado em um discurso de guerra contra um inimigo interno, após as evasões massivas de estudantes no metrô, marchas multitudinárias e panelaços em várias regiões, parece que após 30 anos o sistema de vida implantado finalmente está posto em questão.
Um sistema de vida que tem suas bases na constituição política herdada da ditadura, que apesar de alguns ajustes feitos desde o retorno à democracia, mantém uma extrema defesa dos direitos de propriedade e do caráter subsidiário do papel do Estado no Chile, onde a privatização de todos os âmbitos da vida das pessoas trouxe um modelo totalmente bancarizado, em que o endividamento individual para garantir direitos básicos como saúde, educação, moradia, aposentadoria, transporte, entre outros, foi uma constante.
Não é por acaso, portanto, que a destruição do público pelo próprio Estado do Chile faz com que as pessoas busquem se integrar pelo consumo. Não é à toa que o Chile é de longe o país da América Latina com mais metros quadrados em shoppings, o que é acompanhado por uma brutal concentração de renda, onde o 1% do país possui 33% do Produto Interno Bruto, o que está acima da média regional e inclusive dos Estados Unidos (22%).
Uma realidade que tem sido sistematicamente invisibilizada por grandes empresas de informação, gerenciadas por uma imprensa oligopolista (Grupo Edwards e Grupo Sahie) e por canais de televisão cujos proprietários controlam os negócios no varejo, bancos e entretenimento, que implantaram a ideia do Chile como um exemplo em matéria econômica para o resto dos países da região. Em outras palavras, transformaram o Chile em um caso digno de imitar por sua ordem e seriedade fiscal, invisibilizando assim completamente a pilhagem sistemática de seus próprios cidadãos e territórios.
Uma escandalosa pilhagem que se expressa brutalmente nos bens comuns, com o Chile se destacando por ser o primeiro país do mundo a privatizar suas fontes e gestão das águas e a imposição de um extrativismo neoliberal, onde os negócios da mineração, florestal, pesqueiro, agroalimentar, imobiliário, entre outros, seguem completamente desregulamentados, com o país completamente sequestrado pelas grandes fortunas existentes (Grupo Luksic, Grupo Angelini, Grupo Matte, Grupo Ponce-Lerou). Além de concentrarem a riqueza natural, são os que, enfim, fixam os destinos políticos do país por meio do financiamento de campanhas eleitorais.
Diante dessa ordem neoliberal imperante no Chile, o mal-estar generalizado que está sendo expresso com cada vez mais força nos diferentes territórios pode abrir uma oportunidade histórica em relação ao início de um processo constituinte, aguardado por mais de 200 anos, que permita não apenas questionar um modelo econômico em crise, como também construir um novo pacto socioambiental que coloque no centro a construção de uma democracia que dê respostas aos novos desafios do presente.
A experiência dos processos constituintes de países como Bolívia, Equador e Venezuela, sem dúvida, precisam ser referências próximas no que diz respeito às lutas dos povos para democratizar seus países, recuperar direitos e restaurar a dignidade. No entanto, como esses próprios países demonstram, com o tempo, caíram em lógicas caudilhistas patriarcais, onde o autoritarismo, o extrativismo e o clientelismo acabaram fortalecendo a pilhagem pelo Estado e a violação de suas próprias constituições.
Além disso, as recentes mobilizações do povo equatoriano contra a guinada neoliberal de Lenin Moreno, onde a CONAIE desempenhou um papel central, após a tentativa do governo de aumentar o preço dos combustíveis, mostram que também não estão dispostos a aceitar receitas do passado naquele país, mas, ao contrário, o que se exige é o aprofundamento da democracia.
Sendo assim, a construção de uma democracia sustentável no Chile, inevitavelmente, deve deixar para trás tanto o neoliberalismo como o estadocentrismo proposto por boa parte das esquerdas e progressismos atuais, buscando outras formas de organização e de nos relacionar horizontalmente, caso contrário, repetirá os mesmos erros e horrores do passado, só que desta vez no marco de uma crise climática, que pela primeira vez está colocando em risco nossa sobrevivência no planeta.
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Chile. Inflexão constituinte contra a pilhagem neoliberal? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU