19 Setembro 2019
"Não somos capazes de explicar a razão da Igreja na vida cotidiana dos homens e mulheres do nosso tempo. Muito menos conseguimos traçar um perfil teológico decente, digno, suportável e não desdenhoso da realidade dos fatos, quando descemos no plano da comunicação pública", constata Marcello Neri, padre e teólogo italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 18-09-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "esse defeito de eclesiologia pública pode ser percebido em vários níveis, desde os abusos até as últimas ingerências do Vaticano sobre o "caminho sinodal" da Igreja católica alemã. Acuados no canto não tanto pela "malignidade" da imprensa, mas por nossa plurianual negligência e pelo pecado corporativo de ocultar a violência infligida, juntamente com toda uma cadeia de viscosas cumplicidades, assumimos completamente o léxico jurídico, criminal e econômico que obrigatoriamente abriu passagem nesse ser pecadora da Igreja".
"A falta dessa eclesiologia pública - assevera o teólogo - torna estagnada aquela clássica, deixando ao direito canônico uma competência excessiva em relação à configuração do corpo eclesial e das comunidades cristãs".
Se eu tentasse esboçar em síntese extrema um dos principais problemas da Igreja Católica atual, eu o definiria nos seguintes termos: hoje não temos uma teologia da Igreja disponível, ou seja, compreensível e sensível, fora da autorreferencialidade da linguagem eclesiástica. Ou seja, não somos capazes de explicar a razão da Igreja na vida cotidiana dos homens e mulheres do nosso tempo. Muito menos conseguimos traçar um perfil teológico decente, digno, suportável e não desdenhoso da realidade dos fatos, quando descemos no plano da comunicação pública.
Temos um imenso aparato eclesiológico que funciona para um número cada vez menor de pessoas, mesmo entre os próprios crentes. E aqui eu esperaria um momento para colocar em movimento todo o sistema imunológico que a Igreja cultiva, às vezes inclusive com certa agressividade, desde o alvorecer da era moderna. Se fatias cada vez maiores do mundo contemporâneo não entendem o traço teológico da Igreja, não será apenas culpa delas; nós também teremos contribuído - é o mínimo de honestidade que devemos a todos, inclusive a nós mesmos.
Com a fé, conseguimos nos virar um pouco melhor, mas quando se trata da Igreja, não vamos além de um mero balbucio. Usando um léxico para iniciados, um tanto esotéricos e tendencialmente sectários, que pouco ou nada diz ao homem e à mulher comuns - mesmo aqueles armados com as melhores intenções em relação à própria Igreja.
Esse defeito de eclesiologia pública pode ser percebido em vários níveis, desde os abusos até as últimas ingerências do Vaticano sobre o "caminho sinodal" da Igreja católica alemã. Acuados no canto não tanto pela "malignidade" da imprensa, mas por nossa plurianual negligência e pelo pecado corporativo de ocultar a violência infligida, juntamente com toda uma cadeia de viscosas cumplicidades, assumimos completamente o léxico jurídico, criminal e econômico que obrigatoriamente abriu passagem nesse ser pecadora da Igreja.
Não quero ser mal interpretado; as intervenções da autoridade eclesial nesses níveis eram necessárias há um tempo que, infelizmente, se tonou imemorável. Os passos dados com dificuldade e os mil contrastes são um bom começo. Mas não podemos ficar satisfeitos com isso, deveríamos ousar mais, deveríamos ter algo diferente a oferecer às vítimas e a toda a sociedade civil que desconfia de nós. Precisamente, deveríamos alinhavar uma eclesiologia pública não para nos justificar, não para salvar uma imunidade divina da Igreja, mas para tornar eficaz além de si mesmo o aparato jurídico, de controle e prevenção que lentamente estamos colocando em prática.
Todos aqueles que já estiveram e estão cuidando das vítimas em nome da Igreja e em sua representação são um patrimônio espiritual e eclesial que não podemos reduzir à sua função. Para eles e para as vítimas que o sentem, deveríamos perguntar que teologia da Igreja seria necessária no espaço público para cuidar dignamente seu sofrimento (vítimas) e sua dedicação (encarregados eclesiais).
Estou convencido de que surgiria o esboço de uma eclesiologia (teológica) pública capaz de reconfigurar todo o corpo eclesial católico. Somente assim poderíamos chegar a uma compreensão teológica da existência e da missão da Igreja que seja decentemente praticável no mundo contemporâneo marcado por sua culpada falta em relação a irmãos e irmãs que foram profundamente feridos ou arruinados pela própria Igreja.
A falta dessa eclesiologia pública torna estagnada aquela clássica, deixando ao direito canônico uma competência excessiva em relação à configuração do corpo eclesial e das comunidades cristãs. Toda instituição precisa de uma lei fundamental, um corpus jurídico constitucional, mas este deve ser fundamentalmente inspirador. Basta olhar para a Veritatis gaudium, em suas duas partes, para ver não apenas o desequilíbrio, mas quase a esquizofrenia em que vivemos há tempo como Igreja. Apenas para dar um exemplo cuja evidência é imediata.
Também a última intervenção do Vaticano em relação à Igreja alemã, que entre mil dificuldades e incertezas está prestes a se direcionar para o "caminho sinodal", é em minha opinião o resultado indireto de uma falta de eclesiologia pública. No final, não conseguimos nos entender e realmente não nos falamos porque estamos nos movendo em planos completamente diferentes - e não conseguimos reconhecer que o segundo plano, aquele público, tem uma valência teológica também para o primeiro, aquele da configuração da Igreja.
Isso não significa que o "caminho sinodal" alemão seja sem máculas nem que seja a solução das soluções. Mas é uma tentativa de se pensar como Igreja a partir do que a Igreja fez, tentando remediar as deficiências dramáticas e culpadas que caracterizaram a sua ação no mundo e em relação às pessoas.
Por fim, a intervenção do Vaticano é sentida e, na minha opinião é, como um dramático desmentido da fraternidade como princípio fundamental que deveria presidir, nas intenções de Francisco, não apenas o conjunto da Igreja, mas inclusive a totalidade humana.
É assim que nos tornamos publicamente não credíveis e não confiáveis, quase sem perceber ou, pior ainda, como se não nos interessasse tanto assim sê-lo na dimensão pública da vida da Igreja.
As disciplinas teológicas surgem das exigências concretas da Igreja como comunidades de discípulos e discípulas no mundo comum do ser humano, lugar que Deus deseja habitar como sua própria moradia. Inventar uma eclesiologia pública, que também significa dar forma a celebrações litúrgicas que respondem e correspondem a um preciso habitar na história humana do viver, parece-me um imperativo no momento presente.
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A urgência de uma eclesiologia pública - Instituto Humanitas Unisinos - IHU