27 Agosto 2019
A escravidão moderna ainda acorrenta mais de 40 milhões de pessoas em pleno século XXI, números dramáticos que ganham atualidade, nesta sexta-feira, dia 23, quando é comemorado o Dia Internacional para a Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição, da Organização das Nações Unidas.
A reportagem é de Clara Giménez Lorenzo, publicada por Público, 22-08-2019. A tradução é do Cepat.
O dado apavorante provém das conclusões do relatório da Walk Free Foundation (WFF), uma agência que colabora com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 23 de agosto de 1791, houve uma revolta de escravos na então colônia francesa de Santo Domingo (Saint Domingue), hoje Haiti, revolta considerada o primeiro levante contra o poderoso sistema escravista. Duzentos anos após aquela época colonial, esse cruel sistema de opressão persiste hoje, como evidenciado pelo Índice Global de Escravidão (GSI), elaborado pela citada WFF.
Segundo o relatório deste organismo, publicado em julho de 2018, cerca de 40,3 milhões de pessoas no mundo são vítimas da chamada escravidão moderna, um termo que inclui situações em que uma pessoa, mediante ameaças, violência, coerção, abuso de poder e engano, é privada de sua liberdade para controlar seu corpo, escolher ou recusar um emprego ou deixar de trabalhar.
A própria OIT considera duas formas atuais de submissão: trabalho forçado e os casamentos forçados. Quase 25 milhões de seres humanos são vítimas de trabalho imposto por pessoas ou entidades públicas e privadas. Entre elas, cerca de cinco milhões sofrem exploração sexual e mais de 15 milhões se veem obrigadas a se casar contra sua vontade.
Os dez países que lideram a escravidão moderna são Coréia do Norte, Eritreia, Burundi, República Centro-Africana, Afeganistão, Mauritânia, Sudão do Sul, Paquistão, Camboja e Irã, embora nenhum canto do mundo esteja isento de situações de exploração.
No Brasil, por exemplo, um caso relatado é o de dois irmãos, Elias e Nerisvan Vieira da Silva, que permaneceram trancados em uma fazenda e em contato permanente com produtos tóxicos.
Elias e Nerisvan foram ameaçados de não receber nenhum pagamento por seu trabalho, se tentassem escapar, de acordo com a ONG estadunidense Free the Slaves, que colaborou com outras organizações locais para lhes devolver a liberdade. Hoje, voltaram a trabalhar como agricultores no outro extremo do país.
O caso desses irmãos tem muito a ver com os pescadores do Lago Volta (Gana), os fabricantes de tijolos de Pahasaur (Índia) e com as 403.000 pessoas que sofrem escravidão nos Estados Unidos, o país mais desenvolvido do mundo, segundo os dados do mencionado GSI.
Para a OIT, a vulnerabilidade econômica é a principal causa da escravidão moderna. Um de seus especialistas, o brasileiro Luiz Machado, explica à Efe por telefone que "se os salários não puderem atender às necessidades dos trabalhadores e de suas famílias, procurarão outras maneiras de complementar sua renda e tentar viver decentemente. Uma família pobre aceita qualquer tipo de trabalho para sobreviver”.
No que diz respeito à exploração por gênero, a OIT observa que 71% das vítimas são mulheres. Concretamente, mulheres e meninas representam 99% das pessoas que sofrem trabalho forçado na indústria do comércio sexual e chegam até 84% as que são forçadas a se casar.
Esse sistema moderno de exploração não afeta apenas o tráfico de seres humanos, na medida em que as vítimas podem ser submetidas no âmbito doméstico e no próprio local de nascimento.
O tráfico para fins de exploração sexual é um tipo concreto. Por exemplo, não envolve necessariamente a travessia ilegal de fronteiras, mas quando é assim, também pode envolver o tráfico ilegal de pessoas.
A jovem Joy Amen Omoruyi foi capturada em sua Nigéria natal, quando confiou naqueles que supostamente deveriam ajudá-la a chegar na Europa. Joy passou pela Líbia e Itália até que finalmente foi instalada na Áustria, onde seus traficantes informaram que havia contraído uma "dívida" de 20.000 euros. Foi forçada a se prostituir por vários meses nas ruas de Viena, a fim de saudá-la, até que conseguiu escapar.
Nove anos depois, a jovem vive em Pamplona (Espanha) e trabalha em Acción contra la Trata (ACT) como auxiliar de mediação para lutar contra a exploração sexual. Sua intenção é sensibilizar sobre o que acontece com milhares de mulheres e meninas que saem de países como a Nigéria em busca de uma vida melhor.
"A Europa", diz à Efe por telefone, "não é o que as pessoas no meu país acreditam, tampouco são conscientes das dificuldades e perigos que existem ao longo do caminho ... como cair nas redes de tráfico".
Pouco se sabe sobre a prática de obrigar as mulheres a se casarem, um costume habitual em certas comunidades da África, Oriente Médio, Ásia e América Latina. De acordo com seus próprios cálculos, o UNICEF estima que aproximadamente 650 milhões de meninas e mulheres em todo o mundo se casaram antes dos 18 anos.
Num contexto de globalização, multiculturalismo e migrações, casamentos forçados começaram a aparecer na Europa. A Federação das Mulheres Progressistas da Espanha (FMP) preparou, em 2018, o relatório “Não aceito”, uma investigação preliminar que visa trazer à luz casamentos forçados neste país. "Ainda não há grandes dados sobre essa realidade", comenta a advogada Beatriz Lázaro, consultora da FMP como especialista em violência de gênero e uma das autoras do relatório.
Lázaro diferencia duas premissas tipificadas no Código Penal: os casamentos compreendidos dentro do tráfico e aqueles que ocorrem no ambiente familiar. "Todas as mulheres vítimas de casamentos forçados", diz, "normalmente sofrem outras múltiplas violências, como agressão sexual, violência de gênero e trabalhos forçados".
Luiz Machado, o citado especialista da OIT, afirma que "todos os Estados são contra a escravidão moderna, mas muitos não reconhecem que exista em seu próprio território. O maior desafio é esse reconhecimento e a ação posterior".
Na Espanha, por exemplo, a escravidão moderna também é um fato que atinge cerca de 105.000 pessoas, segundo o GSI. Desde janeiro de 2019, a Guarda Civil do país inspecionou 952 lugares onde a exploração do trabalho pôde ocorrer. E também libertou 68 vítimas e prendeu 38 criminosos.
Da mesma forma, foi lançada a campanha #trabajoforzoso, voltada diretamente para possíveis vítimas de tráfico de seres humanos.
Na Espanha, entre os que sofrem exploração sexual, 90% são mulheres e meninas, ao passo que a exploração do trabalho atinge 80% dos homens, em comparação com 20% de mulheres.
Além de denunciar esses crimes graves e pressionar as autoridades para endurecerem a legislação, os especialistas consideram que a sociedade civil pode atuar no dia a dia contra a escravidão no século XXI. A coisa mais simples, dizem, é tentar conhecer de onde vêm os produtos que consumimos. Segundo o GSI, a Espanha é o quarto país, em um ranking de 20, com mais dependência da escravidão moderna na cadeia de suprimentos da indústria pesqueira.
Os bens de consumo com maior risco de serem produzidos em situações de escravidão são computadores e celulares, roupas, pescado, cacau e cana-de-açúcar.
Nem todo mundo terá a oportunidade de ajudar pessoas como Joy ou os irmãos Da Silva, mas todo cidadão pode conhecer, denunciar e lutar na medida de suas possibilidades contra um flagelo como a escravidão moderna.
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A escravidão moderna ainda acorrenta 40 milhões de pessoas no século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU