14 Junho 2019
"O problema, para os EUA, é a emergência de um rival competidor admirável na Eurásia — e, pior ainda, uma parceria estratégica. Esse fato jogou essas elites no modo de Suprema Paranoia, que está fazendo o mundo inteiro de vítima", escreve Pepe Escobar, jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas, em artigo publicado por Outras Palavras, 12-06-2019. A tradução é de Gabriela Leite.
Uma Guerra Fria 2.0 pode estar a caminho: depois de sanções dos EUA a Huawei, Xi Jinping e Putin aprofundam cooperação. Planos de integrar a Eurásia são séria ameaça a hegemonia de Washington — e podem alterar a balança geopolítica
Um fato extraordinário começou com uma caminhada curta em São Petersburgo, na última sexta-feira.
Depois de um passeio, eles pegaram um barco no Rio Neva, visitaram o lendário navio de cruzeiro Aurora, e deram um pulo no Hermitage, para examinar algumas das obras-primas do Renascimento. Tranquilos, calmos, plenos, a todo o momento parecia que estavam mapeando as entradas e saídas de um novo, emergente mundo multipolar.
O presidente chinês Xi Jinping foi o convidado de honra do presidente russo Vladimir Putin. Foi a oitava viagem de Xi à Rússia desde 2013, quando anunciou a Nova Rota da Seda, ou Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês).
Primeiro, se encontraram em Moscou, assinando diversos acordos. O mais importante foi uma grande surpresa: o compromisso de desenvolver o comércio bilateral e os pagamentos transfronteiriços usando o rublo e o yuan, evitando o dólar norte americano.
Então, Xi visitou o Fórum Internacional Econômico de São Petersburgo (SPIEF, na sigla em inglês), principal reunião de negócios da Rússia, absolutamente essencial para quem quiser entender os mecanismos hiper complexos inerentes à construção da integração da Eurásia. Abordei algumas das principais discussões e mesas redondas do SPIEF, aqui.
Em Moscou, Putin e Xi assinaram duas declarações conjuntas — cujos conceitos chave, crucialmente, são “parceria abrangente”, “interação estratégica” e “estabilidade global estratégica”.
Em seu discurso em São Petersburgo, Xi salientou a “parceria estratégica abrangente”. Enfatizou que a China e a Rússia estão ambas comprometidas com o desenvolvimento verde, sustentável e de baixo carbono. Descreveu a expansão da Nova Rota da Seda como “consistente com a agenda das Nações Unidas de desenvolvimento sustentável”, e elogiou a interconexão do projeto com a União Econômica Eurasiática (EAEU, na sigla em inglês). Enfatizou como tudo isso possui consistência com a ideia de Putin de uma Grande Parceria Eurasiática. Exaltou o “efeito sinergético” da Rota, ligado à cooperação Sul-Sul.
Crucialmente, Xi enfatizou que a China “não vai buscar desenvolvimento às custas do meio ambiente”; que o país “vai implementar o acordo climático de Paris”; e que estão “prontos para compartilhar a tecnologia 5G com todos os parceiros”, a caminho de uma mudança fundamental no modelo de crescimento econômico.
Era óbvio que isso estava sendo lentamente fermentado nos últimos seis anos. Agora, o negócio está em aberto. A parceria estratégica abrangente Rússia-China está prosperando: não como um tratado aliado, mas como um caminho sólido rumo à integração da Eurásia e à consolidação de um mundo multipolar.
O unipolarismo — via sua matriz de demonização — primeiro acelerou o protagonismo da Rússia na Ásia. Agora, a guerra comercial travada pelos EUA facilitou a consolidação da Rússia como principal parceiro estratégico da China.
É bom que o ministro de Relações Exteriores da Rússia esteja pronto para repudiar afirmações quase diárias que virão, por exemplo, do presidente do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, o general Joseph Dunford, quando alega que Moscou pretende usar armas nucleares não-estratégicas. É parte de um processo ininterrupto — agora em marcha rápida — de gerar histeria ao aterrorizar os aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) com a “ameaça” russa.
É melhor que Moscou esteja pronto para se esquivar e neutralizar as resmas de relatórios como as últimas da RAND Corporation, entidade que desenvolve pesquisas para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, que delineia — como não? — uma Guerra Fria 2.0 contra a Rússia.
Em 2014 a Rússia não reagiu às sanções impostas por Washington. Naquele momento, bastava simplesmente ameaçar uma inadimplência de U$ 700 bilhões (R$ 2,715 trilhões) da dívida externa. Isso teria aniquilado as sanções.
Agora, há amplo debate dentro dos círculos de inteligência russos sobre o que fazer no caso de Moscou enfrentar a expectativa de ser cortado do sistema de compensação financeira CHIPS-SWIFT.
Com poucas ilusões sobre o que pode se passar na reunião do G20 em Osaka, no fim do mês, em termos de um avanço entre as relações EUA-Rússia, fontes internas me disseram que o CEO da Rosneft, Igor Sechin, está preparado para mandar uma mensagem mais “realista” — se as pressões finalmente vierem a impelir.
Sua mensagem à União Europeia, no caso, seria cortá-los fora, e ligar-se à China de vez. Dessa maneira, o petróleo russo seria totalmente redirecionado da UE à China, tornando os europeus completamente dependentes do Estreito de Ormuz.
Pequim, por sua parte, parece ter finalmente compreendido que a atual ofensiva do governo de Trump não é uma mera guerra comercial, mas um ataque estabelecido ao seu milagre econômico, incluindo uma ação orquestrada para cortar a China de grandes faixas da economia mundial.
A guerra contra a Huawei — a galinha dos ovos de ouro da supremacia 5G chinesa — foi identificada como um ataque à cabeça do dragão. O ataque à Huawei não diz respeito apenas ao mega hub tecnológico de Shenzhen, mas ao Delta do Rio das Pérolas inteiro: um ecossistema de 3 trilhões de yuan (1,7 trilhões de reais), que fornece as porcas e parafusos da cadeia de suprimentos chinesa para as fabricantes de alta tecnologia.
Nem o avanço tecnológico da China, nem o conhecimento hipersônico sem igual da Rússia causaram indisposição à estrutura dos Estados Unidos. Se há respostas, elas deveriam vir das elites excepcionalistas.
O problema, para os EUA, é a emergência de um rival competidor admirável na Eurásia — e, pior ainda, uma parceria estratégica. Esse fato jogou essas elites no modo de Suprema Paranoia, que está fazendo o mundo inteiro de vítima.
Como contraste, o conceito de um Anel de Ouro de Grandes Poderes Multipolares tem sido considerada, na qual Turquia, Iraque, Irã, Paquistão, Rússia e China poderiam providenciar um “cinturão de estabilidade” para o Rimland do Sul da Ásia.
Discuti variações dessa ideia com analistas russos, iranianos, paquistaneses e turcos — mas parece ser demasiado pensamento positivo. Todas essas nações admitem que o estabelecimento do Anel de Ouro seria bem-vinda; mas ninguém sabe para que lado o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, penderia — intoxicado como está com os sonhos de status de Big Power, no cerne da mistura indo-pacífica dos Estados Unidos.
Talvez seja mais realista presumir que, se Washignton não for à guerra contra o Irã — pois o Pentágono estabeleceu que isso seria um pesadelo –, todas as opções ainda estão se alterando na mesa, do Mar do Sul da China ao Indo-Pacífico mais amplo.
O Estado Profundo não vai hesitar em liberar prejuízos concêntricos na periferia da Rússia e da China e, então, tentar avançar na desestabilização de seu coração a partir de dentro. A parceria estratégica Rússia-China gerou uma ferida profunda: dói — e como! — estar de fora da Eurásia.
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Rússia e China: fim do mundo unipolar? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU