26 Março 2019
Uma das principais referências no debate sobre a questão urbana no Brasil, Erminia Maricato, é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, onde atua como professora. Foi Secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo entre os anos 1989 e 1992. Formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades, onde foi Ministra Adjunta (2003-2005).
A reportagem é de Marcos Barbosa, publicada por Brasil De Fato, 25-03-2019.
No BR Cidades, nós somos uma rede para discutir um projeto, a partir de um diagnóstico para repensar cidades. A gente acha que está em um outro ciclo político, econômico e social, (para isso, é preciso) uma formulação de proposta. Quais são nossas propostas? Em 2020, nós temos eleições municipais. Nós já tivemos um ciclo municipal que foi importantíssimo. Então, por que não a gente discutir um projeto para 2020? Começamos com um manifesto. De repente, explode e nós já estamos em 15 núcleos estaduais. As cidades tinham saído, mas elas são o tema do dia a dia de 84% da população brasileira.
Cidade é um produto muito complexo. Não é alguma coisa que, do dia para a noite, você tem uma mudança. Tanto que, as características das nossas cidades, elas têm a ver com raízes históricas. A escravidão marcou as cidades brasileiras até hoje. Não só na exclusão dos negros e negras, segregação, desigualdade. Existe, na própria infraestrutura da cidade, na arquitetura, toda uma marca que vem do fato de você ter uma mão-de-obra barata, fácil e, até semiescrava, se você pegar o que é o empregado doméstico no Brasil. Nós temos marcas centenárias. Eu costumo citar muito a legislação. Nós temos uma legislação urbanística muito avançada, desde a Constituição de 1988 até o último projeto de lei federal importante, que é o Estatuto da Metrópole, passando pela lei federal da mobilidade, lei federal dos resíduos sólidos e pelo Estatuto da Cidade, que é festejado no mundo inteiro. É um arcabouço legal muito avançado para uma realidade atrasada. Na aplicação da lei, ela é profundamente subordinada às relações sociais demarcadas pela desigualdade. Eu considero que a propriedade da terra e dos imóveis no Brasil continua sendo o nó.
Se eu considerar o que aconteceu nas cidades no passado recente, especialmente a partir da crise internacional de 2008, é quando a economia brasileira começa a emborcar em um movimento que não teve ainda recuperação. Entre 2009 e 2015, nós passamos por um ataque especulativo imobiliário. As cidades brasileiras passaram por uma produção imobiliária muito expressiva, tanto a produção de moradias de baixa renda - com o Minha Casa Minha Vida entregando mais de quatro milhões de moradias - quanto com o mercado imobiliário, que mudou o perfil das cidades brasileiras, mas piorou as condições de vida. As cidades ficaram mais caras e mais especulativas. O que aconteceu na sociedade brasileira com esse boom imobiliário foi o aumento exponencial do preço da terra e dos imóveis. Superou investimento na bolsa, inflação, custo de vida, e os aluguéis acompanharam.
A maior parte da população brasileira urbana, por exemplo, mora ilegalmente. Por que a maior parte mora ilegalmente? Isso faz parte da nossa Constituição. A cidade é toda estruturada por meio de lei, para uma minoria morar legalmente. Nem sempre, essa minoria está seguindo a lei, mas ela formalmente está ali. Então, você tem esse mundo submetido a qualquer hora, chegar uma desapropriação, despejo. Eu estou vendo que as periferias estão se tornando áreas explosivas, cada vez mais e o governo está jogando com a sorte nisso. Nós temos uma certa invisibilidade sobre o que se passa na cidade, principalmente na cidade da maior parte da população, que é das camadas populares e de baixa renda. As vítimas da falta de moradia, de mobilidade, da falta de bom atendimento na área de saúde, elas têm cor no Brasil e tem, também, um aspecto de gênero nessa história toda. A ocupação ilegal de terra no Brasil é regra numa exceção.
Eu não conheço nenhuma cidade em que a participação popular na elaboração da lei seja muito forte. Quando eu vi o evento em Recife da discussão do plano diretor eu pensei “Gente, existe um lugar nesse país que está mobilizado”. Nesse assalto especulativo imobiliário, houve uma mudança de legislação generalizada pelo Brasil, sem resistência nenhuma. Então, (em Recife), em uma correlação de forças em que a democracia está sendo muito atacada, isso aí (Debate do Plano Diretor) foi muito importante. Essa mobilização foi única. O mercado imobiliário está muito empoderado e tentando mudar a legislação. Eu não vi nenhum lugar em que a mobilização popular foi igual ao que houve aqui. Então, vocês estão em um rumo de um empoderamento da discussão democrática de plano diretor.
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"As vítimas da falta de moradia têm cor no Brasil" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU