13 Março 2019
Christine Pedotti e Anne Soupa denunciam tanto os abusos perpetrados contra as religiosas pelos sacerdotes, como o conceito degradante de “Mulher” da Igreja Católica, cujo artífice foi Karol Wojtyla. A denúncia é feita em artigo publicado por Anne Soupa e Christine Pedotti, no jornal Le Monde, 11-03-2019. A tradução é de André Langer.
Anne Soupa é escritora e cofundadora do Movimento Reformador da Conferência Católica dos Batizados Franceses e Christine Pedotti é diretora editorial da Témoignage Chrétien.
A Jornada dos Direitos da Mulher de 2019 foi para nós, mulheres, católicas e não-católicas, um dia de luto e de indignação.
Nós gritamos nosso horror diante da recente divulgação pela cadeia Arte do documentário Religieuses abusées, l’autre scandale de l’Eglise [Religiosas abusadas, outro escândalo da Igreja], de Marie-Pierre Raimbault e Eric Quintin, dedicado aos abusos e violação de mulheres consagradas por sacerdotes.
Durante mais de dez anos, muitas mulheres, especialmente as do Comité de la jupe, não cessaram de questionar a Igreja sobre a sua atitude em relação às mulheres, recolhendo respostas condescendentes como a de André Vingt-Trois, na época em que era cardeal arcebispo de Paris, cujas palavras devem ser recordadas: “Não basta usar saia; é preciso, além disso, ter algo na cabeça”.
Faltam-nos palavras para condenar esses padres que, em se tratando de saias, levantaram especialmente os vestidos das freiras. Pelo fato de que elas dão sua vida para “servir”, eles se serviram, se serviram dos corpos destas mulheres, negando seus votos, sua voz, sua dignidade (tantas vezes invocada pela Igreja!), sua própria pessoa de ser humano livre e responsável por seu corpo. Em suas garras, essas mulheres foram despossuídas e reduzidas a uma função sexual, um uso que é concedido, em seguida descartado ou “passado” para outro para que “se aproveite”, com toda impunidade.
Nós nos indignamos com o sistema que produz esses fatos. Não, esses não são meros abusos isolados perpetrados por alguns pervertidos. É necessário constatar que eles emergem dessa “cultura do abuso” denunciada pelo Papa Francisco em sua carta de 20 de agosto de 2018 dirigida ao “Povo de Deus” sobre os abusos de crianças e adolescentes.
Sim, trata-se de um sistema e de uma cultura que nega o corpo do outro, tanto das crianças como das mulheres. Esse sistema está enraizado no ambiente masculino e se perpetua graças à idolatria na qual é mantida a função do sacerdote.
Mas há algo pior. Existe o conceito que a Igreja Católica forjou e que chama de “Mulher”. Denunciamos a pobreza e a indigência, assim como a manobra de dominação que anima essa visão. Sob a influência decisiva do Papa João Paulo II, “a mulher” torna-se uma ideia, concebida exclusivamente por homens – celibatários, além dos mais. Sua única vocação, seu propósito é ajudar o homem pelo casamento e pela maternidade ou servir a Igreja na castidade religiosa; uma visão que não tem relação com as mulheres de carne, sangue, espírito e alma que constituem metade da raça humana e pelo menos dois terços dos católicos praticantes.
Ousamos dizer que o primeiro abuso cometido contra as mulheres é essa idealização, esse engano que mascara as inúmeras discriminações de que as mulheres são objeto em sua própria Igreja. É sobre o altar desta mulher-ideia que são sacrificadas as vidas das mulheres reais.
Na Igreja Católica, “a Mulher” deve responder a uma dupla vocação de ser “virgem ou mãe”. Ela é atribuída ao seu corpo sexuado; seu “não uso” na virgindade ou seu “uso” na maternidade, sem que nenhum espaço seja deixado para as outras dimensões do ser humano!
Nós denunciamos a mentira e a hipocrisia dessa ideologia que pesa sobre nós. É ela que revela os abusos nos corpos das mulheres religiosas. Elas fizeram o voto de castidade e sua palavra é violada junto com o corpo. Quando essas violações levam à gravidez, são forçadas a abortar ou o bebê é cinicamente abandonado por ordem expressa da responsável da comunidade. A violência feita a seus corpos está agora no auge, pois até mesmo a maternidade, sua “outra” vocação, lhes é proibida.
Assim, os líderes da Igreja Católica impõem a todas as mulheres a sua ideologia da “Mulher”. Além disso – auxiliados por algumas mulheres ganhas para a causa do sistema –, eles próprios violam as regras que impõem a todos.
Nossa acusação não se dirige apenas aos criminosos e estupradores. Ela visa a conspiração do silêncio que cercou essas monstruosas ações. “A roupa suja lava-se em família”, diz-se para justificar manter a mídia e a justiça à distância. Mas esta roupa suja é simplesmente removida, sem nunca frequentar máquina de lavar roupa ou sabão. Estaríamos na presença de um exército que administra seu BMC (bordel militar de campanha) como um mal menor?
Neste dia 8 de março, fortalecidas pelo Evangelho e a atitude do próprio Jesus para com as mulheres, reafirmamos os direitos imprescritíveis das mulheres, que são de todo ser humano, em todo lugar e especialmente na Igreja.
Nós pedimos a descanonização do Papa João Paulo II, protetor dos abusadores em nome da “razão de Igreja” e principal arquiteto da construção ideológica da “Mulher” (*), bem como da proibição de ensinar, divulgar ou publicar a “teologia do corpo” que ele pregou durante as suas catequeses das quartas-feiras.
* João Paulo II foi a voz decisiva que levou o Papa Paulo VI a condenar a contracepção (Encíclica Humanae Vitae). Na sequência, ele desenvolveu uma Teologia da Mulher, sempre referindo-se à Virgem Maria, figura de silêncio e de obediência.
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“Nós pedimos a descanonização de João Paulo II”. Artigo de Anne Soupa e Christine Pedotti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU