06 Março 2019
“Todos nós sabemos o que Francisco quer dizer quando deseja que os pastores vivam impregnados com o cheiro do rebanho, mas nós não o fazemos”, disse o arcebispo no simpósio pelo 75º aniversário da revista Vida Religiosa.
Para o pastor português, “o grande perigo da vida consagrada é ela tornar-se uma vida asséptica, sem cheiro, sem feições e sem capacidade de gerar lembranças”.
A reportagem é de Elena Magariños e publicada por Vida Nueva, 03-03-2019. A tradução é de André Langer.
“A excessiva interiorização da experiência espiritual e o distanciamento do corpo e do mundo seguem sendo, em grande medida, características marcantes da espiritualidade que hoje se pratica”. Com estas palavras, José Tolentino Mendonça, arcebispo bibliotecário da Santa Sé, iniciou sua intervenção no evento comemorativo dos 75 anos da revista Vida Religiosa, que aconteceu neste final de semana em Madri.
Assim, o bispo português explicou aos mais de 370 consagrados presentes que, “muitas vezes, o espiritual é considerado superior ao corporal”, no sentido de que o espiritual costuma ser denominado como “complexo e profundo”, ao passo que o corporal “é frívolo”. No entanto, assinalou que “no centro da narrativa bíblica não encontramos as oposições tão frequentes que ocorreram posteriormente entre corpo e espírito”.
“Deus é um Deus de vivos, não de mortos”, disse. Por isso, “a concepção bíblica se afasta das visões demasiado espiritualistas”, baseadas no “platonismo e suas réplicas tão estendidas” parecem evitar que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”.
Assim, “na arte cristã primitiva encontramos muito frequentemente a representação de homens e mulheres em oração, onde suas posições nos fazem pensar sobre a importância do corpo e sua postura”, de tal maneira que “são nossos corpos que rezam e não apenas os nossos pensamentos”. “A oração ocupa cada um dos nossos cinco sentidos”, acrescentou.
“Em nosso corpo vivemos, nos movemos e existimos” e, por isso, “como recorda São Paulo, se amamos a Deus, abraçamos o mundo e a vida em sua totalidade”. Neste sentido, “a mística é uma declaração de amor à vida, e o místico é aquele que vive aberto à ampla difusão da realidade e comprometido com a dor do mundo”.
Durante a sua intervenção, Tolentino apontou a importância de considerar a vida como faz Paulo na Carta a Tito: “Levar mais a sério a nossa humanidade, como uma narrativa de Deus que vive neste mundo” e destacou a necessidade de criar “uma nova gramática que reconcilie o que somos e o que nos tornamos, com a nossa fé”.
“Deus é cúmplice da nossa afetividade, é onipotente e frágil, sobrenatural e sensível”, disse, interpelando os consagrados a se perguntar se “não terá chegado a hora” de “cuidar dos nossos sentidos” e “compreender melhor o que une sentidos e sentido”. “Os sentidos do nosso corpo nos abrem para a experiência de Deus neste mundo”, frisou, “mas precisamos de uma educação dos sentidos, que nos ajudem a vê-los de uma perspectiva espiritual”.
Tolentino desfiou, um a um, a singularidade dos sentidos, tornando os presentes partícipes de sua importância. “Nós precisamos voltar ao tato”, apontou, já que “a pele cobre o nosso corpo, separa e une, ao mesmo tempo, o mundo exterior e interior” e “permite que não nos limitemos a esbarrar uns nos outros, mas que nos encontremos”.
“Também precisamos voltar ao paladar”, já que a capacidade gustativa é realmente indispensável para “apreciar, não apenas com a mente, a realidade do mundo e o que somos”. O olfato, por outro lado, “é uma via imensa de conhecimento” que “desperta vocês para um contato fusional com o mundo”. Como exemplo disso apresentou os bebês, que, “no final da primeira semana de vida, reconhecem a mãe pelo cheiro e, anos depois, as mães anseiam pelo cheiro de seus filhos”.
E acrescentou a famosa frase de Francisco de que os pastores devem viver impregnados do cheiro do rebanho. “Todos sabíamos o que queria dizer, mesmo que não o façamos”, acrescentou. Por isso, “o grande perigo da vida consagrada é ela tornar-se uma vida asséptica, sem cheiro, sem feições e sem capacidade de gerar lembranças”.
“Vivemos rodeados de sons”, uma vez que “com os nossos ouvidos escutamos os rumores do mundo exterior, quer sejam os barulhos, as vozes ou a música que nos consola”. Mas a “escuta desinteressada do outro não se dá apenas com os ouvidos, mas também com o coração”.
Por outro lado, “a visão transforma o mundo em uma janela, embora compreendamos que existem outras dimensões do olhar”. Assim, “somente quando nos olhamos e nos deixamos impressionar pelo outro, amamos as pessoas por si mesmas”.
Por tudo isso, Tolentino fez um apelo à vida religiosa: “As pessoas consagradas precisam olhar novamente para o corpo que somos, a profecia de um amor incondicional, porque somos, em nosso corpo, gramática de Deus”.
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“Temos que levar mais a sério a nossa humanidade”, diz José Tolentino aos consagrados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU