22 Fevereiro 2019
Em sua recente visita apostólica ao Panamá, por ocasião da trigésima quarta Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco dirigiu um discurso aos bispos centro-americanos (SEDAC), sobre o qual vale a pena retornar. Trata-se de um discurso de grande densidade espiritual, mas também de inegável intencionalidade prática: oferecer um modelo fortemente cristológico à Igreja do nosso tempo. A fonte imediata da inspiração para o discurso papal foi o testemunho de São Oscar Romero, que escolheu a expressão "Sentir com a Igreja" como o lema de seu brasão episcopal.
O comentário é de José Tolentino Mendonça, bispo católico, poeta, teólogo português e arquivista e bibliotecário do Vaticano, publicado por L'Osservatore Romano, 17 e 18-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que significa "sentir com a Igreja"? Romero explicava isso como uma participação na glória da Igreja, e que isso nada mais é senão trazer no próprio íntimo toda a kènosis de Cristo.
É disso que Francisco parte, reiterando que a kènosis de Cristo não pertence ao passado, mas é uma garantia atual para descobrir e experimentar a sua presença atuante na história. Porque a kènosis atesta que a salvação de Deus não se produz de uma forma abstrata, mas realmente através da realidade como ela é, aproximando-se da vida concreta, com suas feridas e contradições, com sua sede e sua esperança.
Nesse sentido, a kènosis de Cristo representa um apelo para deixar para trás o plano virtual, aquele das idealizações e dos discursos de ocasião, e abraçar a vida real, permitindo-lhe imprimir na comunidade eclesial (nas nossas prioridades, gostos e escolhas) um sinal efetivo. Não podemos ficar indiferentes ao sofrimento das multidões de excluídos, daqueles que são classificados como resíduos, que são relegados à “série B" e cuja dignidade não é levada em consideração na ordem social e do progresso. Não podemos esquecer, o Papa Francisco insiste, citando uma frase de Bernanos, que "uma verdadeira dor que sai do homem pertence acima de tudo a Deus". É importante lembrar que o termo kènosis não é, em si, um termo bíblico, embora seja inquestionavelmente inspirado nas Escrituras. Foi cunhado tardiamente, pelos Padres gregos, e experimentou um significativo amadurecimento na história da teologia e da espiritualidade, mas remonta diretamente para aquela fórmula incomum que faz a sua aparição no hino cristológico da Carta aos Filipenses (2, 7) quando se diz que Cristo "esvaziou-se a si mesmo" (heauton ekenosen).
É a única vez, em todas as Sagradas Escrituras, que o verbo kenoun - um verbo que no Novo Testamento somente Paulo usa - conhece um uso reflexivo. Paulo retoma o verbo em outras quatro passagens de suas cartas (1Coríntios 1, 17; 9,15; 2 Coríntios 9, 3 e Romanos 4, 14), com diferentes matizes de significado, mas que convergem na ideia de "despir", "esvaziar", "privar de força", "reduzir a nada", "anular".
Em todas essas passagens, no entanto, o verbo aparece dentro de uma cláusula de negação: o objetivo é, nesses casos, evitar o "esvaziamento", seja ele do valor da cruz de Cristo, da fé, ou da credibilidade do apóstolo. Mas em Filipenses 2: 7, vemos uma evidente inversão: é o próprio Jesus quem toma a iniciativa de esvaziar-se: "[Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação], mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo ...”. Na verdade, este "esvaziamento", essa kènosis, não é apenas uma singularidade desse fascinante louvor de Cristo que Paulo insere em Carta aos Filipenses, tornando-se, provavelmente, eco de uma tradição pré-existente, e que podemos descrever como uma espécie de ícone para pensar e amar a Cristo.
A kènosis é uma característica permanente do caminho de Jesus, a ponto que podemos dizer que tudo o seu caminho entre os homens foi um rebaixamento contínuo, expresso no dom radical de si mesmo. A maneira como Jesus assumiu a condição humana foi, até o fim, serviço amoroso aos irmãos, reservando para si o último lugar, dispondo-se a uma progressiva humilhação, obedecendo até à morte, e morte na cruz. Mas essa kènosis assumida por Jesus não eclipsou sua divindade: aliás, justamente através dela, Jesus revelou a sua divindade e aquela do Pai, uma vez que "Deus é amor" (1 João 4,8).
E precisamente no corpo dos escritos joaninos que encontramos uma imagem que explica a estranheza da afirmação do hino dos Filipenses. Este é o capítulo 13 do Evangelho de João, quando Jesus se despe, tira suas vestes e começa a lavar os pés dos discípulos.
O Mestre e Senhor, que se torna Servo para deixar um exemplo: "Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também.” (João 13, 14-15).
Em seu discurso do Panamá, o Papa Francisco ajudou-nos, mais uma vez, a entender em que circunstâncias a Igreja se afasta de Cristo: quando, em vez da kènosis, a igreja se fecha, por medo ou por orgulho, em uma lógica de autossuficiência; ou quando o modelo funcionalista e burocrático se sobrepõe à experiência efetiva da fraternidade, onde a capacidade de chorar as lágrimas uns dos outros e de compartilhar reciprocamente as alegrias torna-se a norma escrita no coração; ou quando o clericalismo, tornando-se fetiche e ideologia de dominação, faz uso abusivo de poder. Francisco propõe à Igreja de hoje colocar-se na dependência de Cristo, interpretando a sua missão não só genericamente na ótica de Cristo, mas como participação real na missão de Cristo.
Ora, a sabedoria cristológica se diferencia de toda outra sabedoria humana, e aos olhos desta última poderá parecer falta de sabedoria, autoesvaziamento de si, desperdício do eu e loucura. Mas não existe construção da identidade cristã sem essa imitatio da kènosis de Cristo. O Santo Padre indica três elementos concretos e atuais dessa imitatio.
A Igreja é chamada a redescobrir a centralidade da compaixão. "A kènosis de Cristo é a mais alta expressão da compaixão do Pai. A Igreja de Cristo é a Igreja da compaixão, e isso começa em casa", Francisco nos lembra. É muito fácil, mesmo nos ambientes eclesiais, deixar-se contaminar por uma lógica de condenação do irmão, em vez de fazer prevalecer os dinamismos da caridade fraterna.
Devemos dar nova vida ao que Paulo escreve na Carta aos Filipenses, quando nos ensina que "vanglória" (kenodoxia) é o oposto daquela humildade, que é tão indispensável para a kènosis: "Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo."(Filipenses 2, 3).
A Igreja é chamada a redescobrir a importância da escuta. Ela é ameaçada por um grande risco, tanto na complexidade organizacional como no dia-a-dia da vida eclesial: sem perceber, permitimos que um espírito administrativo prevaleça, em vez de um espírito de escuta.
Ocupamo-nos tanto com a funcionalidade do sistema a ponto de perder de vista as pessoas e a necessidade de colocá-las no centro da missão eclesial.
Logo nos encontramos sem mais tempo para nos ouvir, as portas se fecham e os monólogos desenraizam o que deveria ser, acima de tudo, o espaço de diálogo e de mútua edificação.
A Igreja é chamada a redescobrir a força geradora da pobreza. A Igreja aprofunda o próprio mistério quando redescobre que a pobreza a torna mais maternal e melhor fortificada pela que é a sua verdadeira força: os braços estendidos e impotentes do Crucifixo.
Desta forma, a Igreja revive as palavras de Pedro e de João, nos Atos dos Apóstolos: "Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda" (At 3, 6). A pobreza evangélica serve para a Igreja de bastião, uma vez que a protege da mundanidade espiritual, do poder sem discernimento, e do ato de ceder a forças externas (sejam elas políticas ou econômicas), que depois limitam a sua liberdade para pregar profeticamente o Evangelho de Cristo. Essa pobreza é certamente um exercício de kènosis, mas também uma condição para a fecundidade de uma Igreja que se quer hoje configurada em Jesus.
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A propósito do discurso do Papa aos bispos no Panamá. A atualidade da kènosis para a Igreja de hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU