07 Fevereiro 2019
"Se olharmos a ação litúrgica e o cuidado com a natureza a partir dessa perspectiva “eucaristizante” compreenderemos o grande impacto que situações como Brumadinho, Mariana, mas também cada pequeno ato de ofensa à natureza, nossa casa comum, exercem sobre a vida litúrgica da Igreja."
A reflexão é de Guto Godoy, artista sacro, bacharel em artes visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Estudou no ateliê de Cláudio Pastro, o mais renomado artista sacro brasileiro. Além disso, ilustrou livros e realizou pinturas em diversas igrejas pelo Brasil. Em 2017 executou o projeto interno e afrescos na igreja Santa Paulina na favela do Heliópolis/SP, marca dos 100 anos da Arquidiocese de São Paulo. Atualmente cursa Arquitetura e Arte para a Liturgia no Pontificio Ateneo Sant’Anselmo, em Roma.
25 de janeiro de 2019, solenidade da conversão de São Paulo Apóstolo, a barragem de rejeitos da empresa de mineração Vale se rompe na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais.
Lama, casas destruídas, 34 mortes confirmadas e outras 252 pessoas desaparecidas até o momento em que escrevo. Um cenário de destruição desolador!
Todo um ecossistema destruído!
Tudo isso poderia ser dado como desastre natural se a causa de tal destruição não fosse a ganância do ser humano, sua obsessão por lucro e sua total incapacidade de “cultivar e guardar a criação” (Gn 2, 15) afim de explorar a natureza até suas últimas possibilidades.
Porém o que tudo isso possui de relacionável com a liturgia da Igreja? Talvez em um primeiro olhar nada possa apresentar tal relação, mas, se olharmos de maneira mais profunda, poderemos encontrar grandes possibilidades de relacioná-las.
Cultivar e guardar a criação são as obrigações do ser humano quando Deus o cria e o coloca no jardim dando-lhe a missão de dominar sobre os seres criados, mas tal dominação não se dá no campo da opressão, da destruição, do uso dos recursos naturais até o seu esgotamento. A missão de dominar deve ser compreendida a luz do versículo 15 do 2º capitulo do Gênesis: cultivar e guarda. A dominação da qual fala o capítulo 1, é a atitude de ser co-criador, dividindo com Deus a tarefa de criar. Repetidas vezes vemos nos mosaicos das antigas basílicas, a cena de Adão nomeando os animais. Nomear é dar existência, e, com isso, partilhar da missão criadora de Deus.
Entretanto, a cobiça, a avareza, a ganância entram no ser humano e passam a destruir a obra realizada pelo Criador. Sucumbindo à tentação, o ser humano perde o seu lugar no jardim e é expulso, já não pode cuidar da criação, pois se crê com maior valor do que toda ela, já não se entende mais como uma parte do grande cosmos criado por Deus... E tem vergonha...
Quando o tempo se cumpre o Pai envia o seu filho para realizar por sua vida, morte e ressurreição a reconciliação de toda a criação, especialmente do gênero humano. Todo o cosmos é redimido pela entrega do Senhor na Cruz e com ele ressuscita do sepulcro. É ele o novo Adão, o primogênito da nova criação! Temos então a gênese da liturgia da Igreja, que brota da morte e da ressurreição do Cristo.
Quando a comunidade cristã se reúne para a Eucaristia, são os dons da criação que ela apresenta ao Pai, pelo Filho, no Espírito. Pão e vinho, simples elementos naturais, sem grande valor monetário, mas que se tornam os mais valiosos alimentos para quem caminha nesse mundo. Apresentamos a Deus, o fruto da terra e do trabalho humano, dons de sua bondade, resultado de suas mãos criadoras. Como nada mais podemos fazer, a Igreja invoca a ação do Espírito para “eucaristizar” os dons e convertê-los no corpo e no sangue do Senhor. Segundo o teólogo ortodoxo Ioannes Zizioulas, os dons do pão e do vinho levam consigo toda a dimensão criatural, não são apenas eles mesmos, mas são sinais de toda a criação que se apresenta ao Pai como oblação no seu filho Jesus. São a totalidade da criação colocados sobre o altar afim de que o Espírito se derrame sobre eles, mas também sobre todo o universo, “eucaristizando” todas as criaturas.
Já na Igreja primitiva, a ação litúrgica compreendia uma santificação da matéria e do tempo, fossem nos sentidos da comunidade celebrante quanto os dons eucaristizados e neles apresentava preces pelo clima, pela abundância dos frutos, pelo trabalho. Assim “reofertavam” a Deus os dons de sua bondade, na ação sacerdotal de toda a criação da qual o homem era o ministro. A ligação entre liturgia e criação é herança e tradição da Igreja e com a reforma do missal após o Concílio Vaticano II se explicitará na apresentação das oferendas, quando o presidente da celebração apresentando o pão e o vinho, bendiz a Deus pelos mesmos que são frutos da terra e do trabalho do homem.
Também na IX Oração Eucarística, para missas com crianças – I, uma bela prece pela criação é prescrita no prefácio: “Nós vos louvamos por todas as coisas bonitas que existem no mundo... Nós vos louvamos pela luz do dia... Nós vos louvamos pela terra...”. A ação de graças também se realiza por toda a obra da criação, por toda natureza, por cada espécie, por cada ecossistema, por cada micro-organismo, pois também eles são dons da bondade de Deus e obras de suas mãos.
Se olharmos a ação litúrgica e o cuidado com a natureza a partir dessa perspectiva “eucaristizante” compreenderemos o grande impacto que situações como Brumadinho, Mariana, mas também cada pequeno ato de ofensa à natureza, nossa casa comum, exercem sobre a vida litúrgica da Igreja. Todos esses atos, do menor ao maior, são pecados. Segundo o Patriarca ortodoxo Bartolomeu, “um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus”.
Situações extremas como a que vive o estado de Minas Gerais são gravíssimo pecado, fruto dos interesses escusos de grandes empresas de mineração, da falta de cuidado com a casa comum e da deificação do dinheiro e do poder. Quem paga a conta são os pobres, as famílias de pescadores e camponeses que viviam próximos às regiões atingidas, os trabalhadores dessa mesma empresa que, como já vimos em casos semelhantes como em Mariana em 2015, se negará a arcar com as consequências de seus atos.
É também dever da Igreja, consciente da dimensão cosmológica de sua liturgia, levantar uma voz profética denunciando tais crimes contra a natureza, chamar a penitencia e a reparação os responsáveis por esses atos e não se calar afim de não ser cúmplice de tal pecado para que os dons apresentados ao Pai na ação litúrgica, não estejam manchados pela lama da omissão, mas sejam, de fato, dons puros e agradáveis ao Criador, para que no seu Filho, através da ação do Espírito Santo, tudo e todos “nos tornemos em Cristo um só corpo e um só Espírito”.
Referências:
ALBINI, C. Ioannis Zizoulas: il creato come Eucaristia. Disponível aqui. Acesso em: 27 jan. 2019.
BÍBLIA: Nova Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2014.
BENSEN, J. A. Criação, Ecologia e Eucaristia. Disponível aqui. Acesso em: 27 de jan. 2019.
FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si'. Disponível aqui. Acesso em 27 de jan. 2019.
MISSAL Dominical. 1ª ed. São Paulo: Paulus, 2016.
ZIZIOULAS I., Il creato come eucaristia. Approccio teologico al problema ecologico, Qiqajon, Bose 1994.
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Eucaristia e Criação: uma reflexão litúrgica acerca do crime de Brumadinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU