29 Janeiro 2019
Pobre Peru. Em janeiro passado, o Papa Francisco visitou o país, mas ninguém prestou atenção nisso, porque a sua parada anterior no vizinho Chile, com seus maciços escândalos de abuso clerical, e a resposta desastrada do papa que enfureceu os sobreviventes e os críticos em todo o mundo obscureceram o fato completamente.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 27-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Agora, um ano depois, Francisco fez uma de suas mais importantes nomeações episcopais em todo o mundo justamente no Peru, e mais uma vez é como uma árvore que cai na floresta sem ninguém pronto para ouvir. Assim como da última vez, o pontífice está roubando o espetáculo em outra nação latino-americana, desta vez o Panamá, para a Jornada Mundial da Juventude, e, na medida em que ninguém tem a capacidade de absorver outras notícias católicas, o foco está nos escândalos de abuso e na preparação para a cúpula de Francisco com os presidentes das Conferências Episcopais sobre o assunto no próximo mês.
O Peru, ao que parece, simplesmente não consegue abrir uma brecha em termos de atenção pública.
No entanto, o que Francisco fez na sexta-feira, 25, ao substituir o cardeal Juan Luis Cipriani, de Lima, que recém tinha completado 75 anos (a idade normal de aposentadoria dos bispos), pelo Pe. Carlos Castillo Mattasoglio, um padre diocesano de Lima, se assemelha muito com as nomeações de Blase Cupich para Chicago, de Carlos Aguiar Retes para a Cidade do México e de Matteo Zuppi para Bolonha, como medidas decisivas de um papa determinado a impor um selo mais progressista do “espírito do Vaticano II” ao corpo episcopal no mundo.
Em cada um desses casos anteriores, Francisco nomeou um moderado-progressista para substituir um líder da ala conservadora da Igreja: o falecido Francis George em Chicago (que morreu em 2015) e Carlo Caffarra em Bolonha (2017), junto com o cardeal Norberto Rivera Carrera, da Cidade do México, que ainda está forte em sua aposentadoria aos 76 anos de idade.
Todos os três eram vistos como bispos solidamente ligados a João Paulo II-Bento XVI, comprometidos com uma forte reafirmação da identidade católica em relação ao secularismo, e todos os três desconfiavam em graus diversos de algumas das novas correntes da Igreja que surgiam no rastro do Concílio Vaticano II (1962-1965).
Ao se mover em uma direção diferente, Francisco enviou sinais de que a Igreja Católica está sob nova direção e, mais uma vez, aos olhos dos fãs do papa, tomando o caminho do aggiornamento (“atualização”) marcado por São João XXIII e pelo Concílio.
Pari passu, a mesma coisa pode ser dita sobre a transição em Lima de Cipriani a Castillo, exceto que de um modo consideravelmente ainda mais concentrado e cristalino.
Durante décadas, Cipriani, membro do Opus Dei, esteve entre os críticos mais resolutos do catolicismo latino-americano em relação à teologia da libertação, a corrente pós-Vaticano II que buscava colocar a Igreja ao lado dos pobres nas lutas por mudança social. Os opositores viam-na, especialmente no auge das batalhas dos anos 1980 e 1990, como um esforço velado para borrifar água benta sobre a análise social marxista.
Cipriani desempenhou um papel de liderança nas tentativas de refrear o Pe. Gustavo Gutiérrez, um teólogo peruano muitas vezes denominado de “pai” da teologia da libertação, porque o seu livro "Teología de la liberación", de 1971, deu nome ao movimento. Apesar de várias revisões da obra de Gutiérrez tanto pelos bispos peruanos quanto pela Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano – frequentemente instigada por Cipriani –, ele nunca foi acusado de erro doutrinal, e especialmente com o seu amigo pessoal, o cardeal alemão Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé sob Francisco, Gutiérrez desfrutou de uma reabilitação mais ou menos completa.
No entanto, as tensões com Cipriani em Lima foram suficientemente desagradáveis para induzir Gutiérrez a se unir aos dominicanos, encontrando um ambiente mais congênito e receptivo para o tipo de ensino, pregação e pesquisa que ele queria fazer.
Castillo, deve-se dizer, chama a si mesmo de “estudante” de Gutiérrez e referiu-se à “opção preferencial pelos pobres”, a célebre frase associada à teologia da libertação, como “irrevogável”. A biografia oficial do novo arcebispo aponta que ele conheceu Gutiérrez quando entrou na União Nacional dos Estudantes Católicos do Peru no fim dos anos 1960, e que os dois desenvolveram uma “amizade duradoura”.
Também de modo notável, o histórico de Castillo é como professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Peru, onde Cipriani travou batalhas titânicas ao longo dos anos para tentar exercer um controle eclesiástico mais estrito e reforçar um senso mais difuso da identidade católica. Algumas questões específicas incluíam a participação de um grupo de estudantes gays nos eventos do campus e uma pesquisa universitária concluindo que a maioria dos moradores de Lima acredita que os casais devem morar juntos antes de casar e que uma mulher não precisa permanecer virgem até o casamento.
Por fim, as disputas entre Cipriani e a universidade tornaram-se tão intensas que Francisco foi obrigado a enviar um visitador apostólico, o cardeal húngaro Péter Erdő, para tentar acalmar os ânimos, e mesmo essa missão produziu apenas resultados confusos.
Ao selecionar um teólogo do corpo docente da universidade para assumir o cargo de Cipriani, Francisco parece ter feito uma declaração bastante clara sobre qual lado da disputa goza da sua simpatia.
Em certo sentido, Cipriani está acostumado a não conseguir o que quer – ele foi derrotado pelo menos quatro vezes como candidato a presidente da Conferência dos Bispos do Peru, em um país com o maior número de prelados ligados ao Opus Dei no mundo. No entanto, ainda é bastante incomum ver o legado de um cardeal sendo desmontado em tempo real como agora, especialmente de um cardeal que está no comando da sua arquidiocese há quase 20 anos.
Dado o poder de permanência dos bispos, a nova administração de Lima poderia exercer uma influência até mesmo além da vida útil do papado em que chegou ao poder.
Para os estadunidenses de uma certa idade, tudo isso pode parecer uma estranha reminiscência da era do arcebispo Jean Jadot, que atuou como o homem do papa nos Estados Unidos, de 1973 a 1980, principalmente com São Paulo VI, e que moldou toda uma geração de bispos moderados-progressistas como Raymond Hunthausen em Seattle, John Quinn em San Francisco e Rembert Weakland em Milwaukee.
Os mesmos tipos de prelados estão sendo nomeados hoje, indicando que uma maneira de os estadunidenses entenderem o que está acontecendo é que “Jean Jadot está vivo, passa bem e mora em Lima”.
Isto é, se ao menos o Peru conseguisse fazer com que alguém notasse isso.
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Nomeação do novo arcebispo de Lima: uma árvore que cai na floresta sem ninguém perceber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU