19 Setembro 2018
É amigo do Papa e um de seus homens mais próximos. Víctor Manuel Fernández, arcebispo de La Plata (Argentina), esteve há pouco com Francisco em Roma e o vê “forte e com vontade de trabalhar”. Explica que Bergoglio sempre pensou que “não convém se defender dos que buscam protagonismo” e que não se encaixa em sua linha usual “tomar medidas disciplinares” contra Carlo M. Viganò. Afinal, o ex-Núncio “é alguém necessitado de um minuto de falsa glória e não resignado a ter a discrição de um aposentado”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 17-09-2018. A tradução é do Cepat.
O que sentiu quando se tornou conhecido o ‘documento’ do ex-Núncio Viganò?
Sempre me ensinaram a colocar em primeiro lugar o Povo de Deus. Neste caso, vejo um consagrado que dá prioridade a seus interesses ideológicos – bem conhecidos – acima do bem das pessoas, que acabam confundidas e desesperançadas. O Papa Francisco, encerrado o processo correspondente, aplicou as máximas sanções ao Cardeal abusador, e isso é a única coisa que sabemos com certeza.
Voltamos às intrigas de um Vatileaks III ou quiseram utilizar a praga dos abusos para minar a autoridade papal?
Este Núncio de mentalidade muito conservadora e um dos grandes inimigos das aberturas de Francisco deveria recordar que os casos mais graves de abusos ocorreram por parte de fundadores de congregações de corte muito conservador (não é necessário nomeá-los, mas recordo pelo menos 5 casos muito graves da América Latina). Acredito que este senhor busca um duplo objetivo: desacreditar Francisco com um tema que tem muita imprensa (nunca a imprensa mundial citou tanto os blogs conservadores católicos como neste caso). E segundo, tirar o peso de si, tentando fazer acreditar que ele não tem responsabilidade alguma pelas lentidões diante dos casos de abusos no país onde era Núncio.
Trata-se de um ataque sem precedentes contra o Papa ou o ex-Núncio é um simples peão nas mãos dos chefes rigoristas?
É mais um caso que demonstra que várias pessoas destes setores esquecem uma parte da lei de Deus e caem no mesmo relativismo ou na moral de situação que criticam. Pensam que sua suposta defesa da doutrina tradicional lhes autoriza a levantar falso testemunho e mentir. Para eles, a calúnia e a difamação são lícitas. Mas, bastaria que lessem a Bíblia para recordar a gravidade do que fazem.
Para este ataque ao Papa, os rigoristas políticos e religiosos se uniram, especialmente nos Estados Unidos?
Não sabemos. Contudo, não acredito que sejam muitos os que chegam a este nível de cinismo. Prefiro pensar bem. Mas, ao contrário, acredito que alguém necessitado de um minuto de falsa glória e não resignado a ter a discrição de um aposentado, com a ajuda de alguns blogs supostamente católicos e uma imprensa que não soube perceber que era uma fonte muito parcial, conseguiu aparecer por alguns dias como o mártir da verdade. Quando conseguir ver o dano que fez em corações simples, talvez sofra muito.
O caso Viganò evidencia enormes lutas de poder na Cúria Romana?
Não acredito. Parece-me que na Cúria houve esforços para se aproximar de Francisco, ainda que isso nem sempre demonstre coerência e resultados notórios. Nestes dias, estive em Roma e, ao contrário, percebo muita dor. Ninguém imagina como é possível que alguém que foi nomeado Núncio de um país importante possa ter semelhante atuação, própria de um adolescente.
Trata-se de desacreditar o Papa, para deter pela raiz suas reformas?
Na realidade, acredito que o Papa é prudente e evita ser ansioso nas reformas, justamente porque tenta conter a todos e evitar rupturas. Totalmente o contrário da atitude desta pessoa, embora não descartaria que tenha algum problema de saúde. O problema é que a imprensa lhe dá espaço. Mais que deter as reformas, parece-me que busca destruir.
As reações ao caso evidenciam uma enorme fratura no episcopado norte-americano?
É chamativo que existam bispos que não busquem tomar distância de alguém que está fora de si. Se vê que há obsessões ideológicas mais poderosas que a sensatez.
Por que o Papa Francisco não se defende ou o fará isso em seu devido tempo?
Ele sempre sustentou que não convém se defender das pessoas que buscam protagonismo, porque é dar a elas o que procuram e alimentar mais sua megalomania. Suponho que neste caso aplica esse critério.
O Papa tomará alguma medida disciplinar contra o acusador?
Pelo que acabo de responder a você, acredito que não. Além disso, basta ver que nestes anos aplicou pouquíssimas sanções. No Vatileaks fez, porque atingia Bento, mas seria raro que fizesse isso quando o ataque é contra ele.
Que efeitos o caso está tendo na credibilidade, na imagem e na autoridade moral da Igreja?
Acredito que em meio à confusão informativa atual ficará finalmente a recordação de um forte ataque contra o Papa, como ocorreu com Paulo VI e outros.
Que medidas mais concretas, além das que já tomou, o Papa pode adotar para acabar com a chaga dos abusos e dos acobertadores?
Acredito que simplesmente fazer cumprir as normas vigentes. Sempre há um limite que é o de evitar destruir alguém que seja acusado injustamente ou por alguma vingança. O mais sadio é cumprir o direito e não colocar freio algum nos processos. Por outro lado, parece-me que não sabemos ajudar as vítimas, porque o que mais interessa é o sofrimento deles. Contudo, também acredito que necessitamos renunciar à obsessão pelo poder e a glória e aspirar uma Igreja mais humilde.
Os bispos dos Estados Unidos deveriam imitar os chilenos e apresentar sua renúncia em bloco?
Eu não sou ninguém para dizer isso.
Os abusos sexuais, de poder e de consciência na Igreja podem acabar desativando as potencialidades do pontificado de Francisco e sugando as energias que, sem dúvida, precisa para seguir reformando a Igreja?
Acredito que o Papa tem suficiente amplitude e coragem para enfrentar este tema sem ficar fechado nele. Se não seria atacar os sintomas em vez de ir às causas, que exigem justamente a mudança profunda que Francisco propõe em nosso modo de ser Igreja, de evangelizar, de tratar com o mundo.
Francisco poderia convocar um novo Concílio ou um Sínodo extraordinário diante da atual situação eclesial?
Acredito que o sínodo se justificaria, se o tema fosse apresentado em um contexto mais amplo. Parece-me que é uma dessas questões que só se dão adequadamente junto com outros assuntos afins e não de maneira isolada. Tem a ver com uma compreensão do sacerdócio, do poder na Igreja, do estilo de vida dos padres, com a formação sacerdotal, com o acompanhamento do clero, com a responsabilidade dos leigos e seu lugar, etc.
Como você, que muitas vezes fala com ele, sente o Papa neste momento? Tem forças e vontade para seguir remando?
Vejo o Papa forte, com vontade de trabalhar. Certamente, perceberá que isto pode ser uma prova que o enfraqueça em seu entusiasmo e em seu amor às pessoas e evitará que isso aconteça.
O que nós, fiéis, podemos fazer para ajudar o Papa neste momento, para que sinta nosso apoio, nosso carinho e nossas orações?
Acredito que é salutar fazer chegar publicamente demonstrações de afeto e de adesão e, ao mesmo tempo, ajudar a desativar esses focos de ódio e vingança que são tecidos dentro da Igreja.
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“O Papa sempre sustentou que não convém se defender das pessoas que buscam protagonismo”. Entrevista com Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU