22 Junho 2017
Poucos sabem “ler tão bem o Papa Francisco” como Víctor Manuel Fernández. O reitor da Pontifícia Universidade Católica da Argentina (UCA) insiste em que, longe de buscar o “populismo distribucionista”, pelo que o culpam alguns meios de comunicação, o Papa defende, ao invés, uma “cultura do encontro”, onde todos tenham meios e possibilidades para dar o melhor de si.
A reportagem é de Cameron Doody, publicada por Religión Digital, 20-06-2017. A tradução é de André Langer.
“Alguns chegam a dizer que esta insistência de Francisco para incluir os pobres e fracos é típica de um populista – palavra tão usada e desgastada ultimamente, por preguiça intelectual, que já perdeu todo sentido –, e que por isso mesmo justifica o desinteresse e a comodidade”, propôs Fernández em um artigo publicado no jornal Perfil.
“Nota-se que não o conhecem e não o leem. Nada mais distante do seu pensamento”, afirmou, e precisou: “Para este papa é indigno alguém não desenvolver suas capacidades, e que viva ‘de cima’ quando tem as possibilidades para desenvolver os dons que recebeu”.
Dom Fernández escreveu que “quando Francisco fala da inclusão social dos pobres, está pedindo que todos tenham possibilidades reais de tomar a vida em suas mãos, de ganhar o pão e de ter acesso a uma vida melhor graças ao esforço e ao desenvolvimento pessoal. Dito de outra maneira, a questão é que todos possam desenvolver o melhor de si”.
“Como vamos construir um belo poliedro se não fazemos florescer as capacidades de todos?”, perguntou.
O reitor da UCA considerou que este exemplo é suficiente “para mostrar como a verdadeira proposta de Francisco costuma aparecer descontextualizada e enviesada na interpretação da mídia”.
“Ele propõe um encontro enriquecedor em que cada pessoa contribui com o melhor de si a partir das suas capacidades e do seu esforço, mas alguns, de maneira superficial, insistem em apresentá-lo como portador de um ‘populismo distribucionista’”, lamentou.
Ler bem o Francisco
Alguns chegam a dizer que esta insistência de Francisco para incluir os pobres e fracos é típica de um populista – palavra tão usada e desgastada ultimamente, por preguiça intelectual, que já perdeu todo sentido –, e que por isso mesmo justifica o desinteresse e a comodidade. Nota-se que não o conhecem e não o leem. Nada mais distante do seu pensamento. Para este papa é indigno alguém não desenvolver suas capacidades, e que viva ‘de cima’ quando tem as possibilidades para desenvolver os dons que recebeu.
Em sua encíclica Laudato Si’ repete que é “prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos” (LS 127). Mas também defende que “ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho” (LS 128). E reconhece que para isso é preciso produzir riqueza, e que por essa mesma razão também são necessários os empresários: “A atividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos” (LS 129). Mas compete ao Estado um papel ativo e criativo para favorecer um tipo de economia que gere postos de trabalho, acima do objetivo do benefício ou da mera liberdade de mercado. Porque o chamado “derrame” sempre é muito desigual.
Em suma, quando Francisco fala da inclusão social dos pobres, está pedindo que todos tenham possibilidades reais para tomar a vida em suas mãos, de ganhar o pão e de ter acesso a uma vida melhor graças ao esforço e ao desenvolvimento pessoal. Dito de outra maneira, a questão é que todos possam desenvolver o melhor de si. Como vamos construir um belo poliedro se não fazemos florescer as capacidades de todos?
Este exemplo é suficiente para mostrar como a verdadeira proposta de Francisco costuma aparecer descontextualizada e enviesada na interpretação da mídia. Ele propõe um encontro enriquecedor em que cada pessoa contribui com o melhor de si a partir das suas capacidades e do seu esforço, mas alguns, de maneira superficial, insistem em apresentá-lo como portador de um “populismo distribucionista”.
A mensagem ao povo argentino
Vamos nos deter na mensagem de Francisco ao povo argentino. Ele voltou a falar da cultura do encontro. Ele nos pediu que à Pátria “entreguemos o melhor de nós mesmos para melhorar, crescer e amadurecer. E com isso será possível conseguir essa cultura do encontro”. Ou seja, para que possa haver uma cultura do encontro é preciso que cada qual queira entregar-se para além dos próprios interesses.
A linguagem do descarte. Depois disse que esta atitude “ultrapassa todas estas culturas do descarte”. E aqui vemos uma segunda condição para a cultura do encontro: convencer-se de que cada pessoa tem seu lugar. Mas aqui Francisco acrescenta uma precisão: que cada pessoa “possa se expressar pacificamente sem ser insultada ou condenada, ou agredida ou mesmo descartada”. Isto é, que cada qual possa opinar diferente, oferecer um matiz, mostrar outro aspecto da realidade sem que caiam sobre ele uma catarata de insultos e suspeitas.
Nesta linha de não excluir ninguém, um tempo atrás algumas expressões que apareceram nos meios de comunicação provocaram em mim uma impressão muito desagradável. Eram palavras de desprezo dirigidas aos marginais, perto de negar sua condição humana. Menciono algumas muito impactantes: “Pobre gente, como se alimentaram mal quando eram crianças estão com os neurônios prejudicados e são fáceis de açodar. Animais. Não tem sentido que essa gente vote”; “eles têm microcefalia, são uns idiotas úteis, negros de salto quebrado”; “eles são escravos que passaram por uma lavagem cerebral aos quais dá no mesmo se forem roubados”; “irracionais adestrados que pingam de gordura; quando é que os militares vão voltar para passar-lhes um laço?”
São palavras textuais. Como será possível unir os argentinos se não ficamos angustiados com o fato de que se digam estas coisas?
O suposto “equilíbrio”
Evidentemente, ninguém ignora que também há expressões agressivas vindas dos setores mais populares e dirigidas às classes médias ou aos empresários, por exemplo. A questão é que não podemos colocá-las em condições de igualdade. Neste assunto não podemos falar de “equilíbrio”. Porque os setores que se consideram mais educados ou mais favorecidos pela vida têm uma responsabilidade muito maior para compreender a situação, os condicionamentos, as histórias sofridas e mesmo os valores dos menos favorecidos.
Há exemplos que são claros e que vi de perto muitas vezes. Durante muito tempo as empregadas domésticas, para poder sustentar os seus filhos, toleraram silenciosamente chacotas, discriminações, maus-tratos e até abusos sexuais por parte de seus empregadores. E também fui testemunha no interior do país (no mítico “campo”) da situação de semi-escravidão à qual eram submetidos alguns peões rurais. Conheço muitas mulheres que trabalharam como animais toda a vida no campo, na informalidade, por pouco mais que a comida. Mas que a certa altura da vida foram muito amavelmente demitidas e foram parar na cidade sem um peso, onde foram obrigadas a construir um barraco de lata à beira do rio.
Acrescentemos a isso as oficinas clandestinas e outras formas modernas de negação da dignidade humana. Chegou-se a dizer em nosso país que os pobres deveriam ser colocados em caminhões e no caminho deveriam ser ensinados a como votar, assim como se afirma que o auxílio por filho só serve para as pobres engravidarem. Nestes casos não vemos esforços sinceros para criar uma cultura do encontro.
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“O Papa não defende o populismo, mas a cultura do encontro”, diz Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU