22 Agosto 2018
O Papa Francisco vai a Dublin no próximo fim de semana para o encerramento do Encontro Mundial das Famílias, que começa na quarta-feira, e grande parte da atenção está voltada para como ele vai encarar a crise de abuso sexual clerical que possivelmente marcou a Igreja do país como nenhum outro lugar no mundo.
Algumas vítimas de abuso chegaram a pedir que o Papa Francisco não vá à Irlanda, nos dias 25 e 26 de agosto, e várias iniciativas de boicote atingiram as redes sociais nas últimas semanas.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 21-08-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Porém, Marie Collins, uma vítima de abuso que teve um papel fundamental para desmascarar sacerdotes abusivos, pressionando pelo relatório Murphy de 2009, declarou que "não se opõe à visita" nem questiona quem quer comparecer aos eventos papais em nome da fé.
Marie Collins afirmou que vai prestar atenção ao que o Papa tem a dizer.
“Penso que por ser um país que foi devastado por revelações de abuso sexual clerical nos últimos 20 anos, é extremamente importante que, mais do que em qualquer outro lugar, ele não ignore a questão quando vier”, disse ela.
O motivo da vinda do Papa à Irlanda é o Encontro Mundial das Famílias, e ela defende que quem é mais atingido por essa crise são as famílias.
"Seria apropriado que ele abordasse a questão enquanto estiver aqui falando com famílias do mundo todo”, disse, acrescentando que não quer "vários outros pedidos de desculpas", mas saber o que Francisco “vai fazer e em quanto tempo”.
No Encontro Mundial das Famílias, ela participará de um painel sobre a proteção das crianças que seria moderado pelo cardeal de Boston, o estadunidense Sean O'Malley, que, na semana passada, desistiu da viagem pois estará ocupado com as denúncias de abuso sexual no seminário de sua própria diocese.
A conversa ocorreu antes da publicação da carta ao Povo de Deus, o documento de 2000 palavras sobre a crise de abuso sexual que foi emitido por Francisco. Seguem observações feitas por Collins durante a entrevista para o site do Crux e para o programa “The Crux of the Matter”, no canal católico Channel Sirius XM 129, que vai ao ar nas segundas-feiras, às 13h (ET), horário dos EUA.
Muitas famílias católicas gostariam de voltar a confiar na instituição. Há algo que o Papa Francisco possa dizer ou fazer para ajudar?
Não sei. Também estou nessa posição. Eu não perdi a fé e a crença em Deus e nos ensinamentos básicos da Igreja Católica, mas não acredito na Igreja hierárquica institucional. E também é a situação de muitas pessoas.
Acho que para restaurar a fé, a confiança e o respeito, é preciso mostrar que não há lugar para os membros da hierarquia que de alguma forma facilitam ou permitem que o abuso aconteça. Porque enquanto isso continuar e quem permite os abusos pode permanecer na Igreja ou em posições de liderança dentro dela, o respeito não será restaurado.
A única coisa que vai restaurar o respeito é vê-los tratadas de forma adequada pela Igreja, com abertura e clareza, e sofrer as consequências duras e públicas por suas ações. Eles precisam provar que a Igreja está realmente eliminando [os abusos] da Igreja.
Sem tirar a responsabilidade da Igreja, qual é a importância de solicitar ações das autoridades civis para a sociedade em geral?
Igreja e Estado estavam muito entrelaçados nessa questão, e em muitos casos o Estado deveria ter intervindo. Eles foram, sob muitos aspectos, igualmente negligentes. Não acho que, de qualquer forma, o fato de o Estado não ter agido bem e não ter protegido as crianças do país permite que a Igreja se ausentasse. Mas eu condenaria o Estado e a Igreja na mesma proporção. Uma jovem fugia de uma residência de Maryknoll, e a polícia levava de volta para as freiras. É impossível estar acima disso também.
Mas pelo menos nessa questão, quando tudo explodiu, as autoridades do Estado aprovaram uma nova lei de proteção às crianças e de notificação compulsória. Eles agiram. Por que a Igreja não pode fazer o mesmo eu não sei. É muito difícil para os católicos que querem confiar na Igreja e querem poder buscar sua religião sem presenciar as falhas internas da instituição sendo noticiadas dia após dia.
Acho que muita gente, incluindo a mim mesma, acreditam em Deus mas respeitam nem creem na Igreja institucional hierárquica. E para recuperar isso, é preciso fazer alguma coisa. As palavras, as desculpas, estão perdendo o sentido, porque já os ouvimos por muito tempo. Apenas ações firmes podem mudar a opinião das pessoas sobre a Igreja, nada mais.
E eles precisam perceber isso. Estarão cegos se não perceberem.
Um relatório lançado no Chile recentemente mostra que 39% das mulheres e 18% dos homens de Santiago dizem ter sido vítimas de abuso infantil. É muito mais generalizado do que ousamos falar...
Na Irlanda também. O número de pessoas que falam abertamente sobre isso representa apenas a ponta do iceberg. E o número de vezes que se abre um processo penal ainda é ainda menor. Pelo menos a lei reguladora da prescrição é diferente aqui. Nos Estados Unidos, a Igreja está lutando contra a extensão da lei reguladora da prescrição.
Acho muito difícil, porque por um lado eles dizem que querem a responsabilização e querem que estes homens [abusivos] sejam responsabilizados, mas ao mesmo tempo combatem a extensão da lei reguladora da prescrição, que está impedindo a responsabilização.
No início de setembro, os novos bispos católicos estarão em Roma para um treinamento de duas semanas, e a senhora já foi palestrante duas vezes. Pode nos contar sobre a experiência?
Originalmente, a Comissão [para a Tutela dos Menores] descobriu que, apesar de os bispos virem a Roma todos os anos para duas semanas de treinamento, eles não tinham nenhum módulo sobre proteção e prevenção de abuso. Até 2015. E isso é incrível se pararmos para pensar, por isso recomendamos que eles passem por algum treinamento.
Nos oferecemos para fazer isso, mas recusaram, possivelmente pela Congregação para os Bispos, e trouxeram o Monsenhor [francês] [Anthony] Anatrella.
Anatrella já foi suspenso por alegações de abuso e causou um alvoroço ao declarar que os bispos não são obrigados a denunciar casos de abuso do clero às autoridades civis...
Acho que depois disso houve uma mudança de pensamento e os poderes decidiram que a comissão poderia estar envolvida. Então, em 2016 e 2017, tivemos uma vaga na formação dos bispos. Uma hora, e tive 10 minutos desse tempo, mas a melhor parte é a seção de perguntas, que sinto que é o verdadeiro momento de aprendizagem.
No entanto, foi muito decepcionante descobrir, em ambos os anos, que apesar de os bispos estarem lá por duas semanas, ouvindo e estudando, o módulo de proteção foi colocado na última sessão da última noite antes de irem embora.
Isso mostra o posicionamento e a mentalidade a respeito da importância e relevância dadas a este assunto. Este ano, creio eu, transferiram para um horário melhor. De certa forma, parece haver uma resistência: nos ‘permitem’ fazer isso, mas não é importante, então será no final do dia. Isso transmite uma mensagem.
A senhora estará em um painel, na sexta-feira, sobre a proteção das crianças, que seria moderada pelo cardeal de Boston Sean O'Malley, líder da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, que anunciou na semana passada que não vai participar. Ele avisou com antecedência que não estaria presente?
Sim. Todos os membros do painel foram informados assim que ele ficou sabendo que não ia, e depois foi publicada a declaração.
Disseram quem o substituiria?
Ninguém vai substituir. Será um painel puramente leigo, e a Baronesa Sheila Hollins será moderadora. E tudo bem, porque ela era uma das palestrantes, junto comigo, Barbara Thorpe e Gaby Di-Liacco.
Qual é a importância do amplo envolvimento dos leigos em questões de proteção?
Acho que é muito importante. Pessoalmente, eu gostaria de ter a presença do cardeal O'Malley, porque na seção de discussão, seria bom colocar algumas questões a ele sobre como as coisas estão sendo levadas e se ele sente que este é o jeito certo de tratá-las, e não teremos essa oportunidade.
Por outro lado, os leigos que estão envolvidos são perfeitamente capazes, e é bom ver isso, porque a maioria dos painéis é moderada por membros da hierarquia. E, particularmente, porque seremos três mulheres e um homem, coitado do Gaby!
Sem considerar o próprio O'Malley, será que passa alguma mensagem o fato de não haver outros membros da hierarquia lá para ouvir o que vocês tem a dizer?
Eu certamente gostaria que algum membro da hierarquia fizesse parte da discussão e de um painel presidido por um leigo. Não acho que tem que ser presidido por um membro da hierarquia. Vemos isso o tempo todo, esse tipo de visão de superioridade - se houver leigos, tudo bem, mas eles não podem presidir a sessão. É uma pena.
Espero que, na perspectiva dos participantes, o público não seja menor, porque acho que talvez muitas famílias vindo para o Encontro Mundial das Famílias estejam mais inclinadas a uma visão mais conservadora e queiram ouvir a fala de um cardeal. Talvez não estejam tão interessadas em ouvir os leigos, o que seria bastante triste.
Muita coisa já aconteceu desde o surgimento da crise de abuso sexual como a conhecemos, em 2002, com Boston e a Irlanda em 2009. Como ainda estamos neste ponto?
Acho que essa é uma pergunta que só podemos fazer à Igreja. Porque ano após ano temos alguma revelação, que só continua. E quanto à resistência de encarar, mudar, garantir que não vamos estar falando sobre isso daqui a duas décadas, as únicas pessoas que podem fazer alguma coisa estão no topo da Igreja.
E acho que a atitude que eu vi quando trabalhava com a comissão em Roma foi de que "tudo isso vai desaparecer, vai passar", o que é uma ilusão. A ideia de que o que está acontecendo em cada país vai parar de repente... O que vai acontecer, na minha opinião, é que cada vez mais países vão deixar o silêncio de lado, e à medida que as vítimas encontrarem sua voz, vai aumentar mais.
A visão da Igreja de sentar e esperar que tudo desapareça é muito limitada, porque eles devem ser as únicas pessoas no mundo que acham que isso vai acontecer. E, no entanto, são muito resistentes.
Recentemente, foi revelado que não há nenhuma política de proteção à criança na cidade do Vaticano, por onde passam milhares de crianças todos os dias. Há um seminário infantil, há coroinhas. E quando foram questionados sobre o porquê de não haver, disseram que estão analisando. Em 2018, ainda estão pensando a respeito?
Sei que é apenas um lugar específico, mas é indicativo desta atitude de “fazemos tudo ao longo dos séculos, por que tem de ser diferente agora”? Tem de ser diferente porque as crianças estão sendo prejudicadas todos os dias em diferentes partes do mundo, e se não se faz nada para impedir, os números continuarão aumentando.
Como vítima de abuso, não quero ver nem sequer uma criança que pode ser protegida sendo ferida. Quero que a liderança da Igreja não só se permita renunciar e ir embora, quero que fique claro o que foi feito, que eles recebam uma punição adequada, e, se necessário, que percam seus títulos e sejam excomungados se a questão for grave o bastante, em vez de apenas poder se distanciar.
É por isso que estou lutando por mudanças. É pela Igreja, mas também e ainda mais pelas crianças que ainda estão em risco.
Algumas vítimas e sobreviventes que se pronunciaram, lutando pela mudança e reforma, acabaram indo embora. A senhora não. De onde vem esse poder?
Minha prioridade sempre foi não ver outras crianças sofrendo o que eu sofri. Quer dizer, 30 anos de minha vida foram devastados pelo abuso que sofri. E eu não quero que outras vidas sejam destruídas da mesma forma que a minha. E acredito que continuando na Igreja eu tenho uma voz mais forte na tentativa de mudança.
Quem sai e fica de fora infelizmente é considerado alguém que está menosprezando o grupo ou atacando a Igreja. E quando se continua católico, tentamos nos manter firmes e mudar as coisas, pedindo mudanças na sua Igreja, não tentando destruí-la.
Sempre me movi pelo fato de querer ver crianças melhor protegidas. E não quero ver nenhuma criança passar pelo que eu e muitos outros no mundo todo tiveram de passar. Como alguém pode querer ver uma criança viver as coisas terríveis que vimos no relatório Pensilvânia?
Talvez eu consiga aguentar firme porque creio em Deus, sou guiada pelo Espírito Santo, eu acho. Tento me segurar na minha fé. Sendo sobrevivente, não é fácil, porque grande parte do tempo estamos sob grande pressão, porque a questão colocada para nós é: "por que você não pede para sair?" Mas ninguém vai me levar a sair, nem a Igreja nem outras pessoas. Vou me manter firme enquanto puder. Isso não significa que eu não estou tentada, já estive muitas vezes para dizer que não posso mais fazer isso.
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Irlandesa vítima de abuso quer um plano de ação do Papa, e não um pedido de desculpas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU