02 Agosto 2018
"A condenação dos 23 é claramente um ato político de vingança (em passagem 23 vezes repetida, o sentenciador se revela chocado com a pressão sofrida pelo ex-governador por meio de uma das ocupações de 2013, o Ocupa Cabral) e de advertência em relação aos movimentos contestatórios em geral", escreve Adriano Pilatti, professor de Direito Constitucional da PUC-Rio. Ele acompanhou as manifestações de 2013-14.
Em junho de 2013, o Brasil foi sacudido por uma onda de manifestações e tumultos que, em sua composição, objetivos, formas de comunicação e expressão, guardam muitas semelhanças com os ocorridos no início desta década em diversas metrópoles do mundo, especialmente na Europa, norte da África, Nova York e Istambul. Tendo como ponto catalisador os aumentos dos preços das passagens de transporte coletivo, aquelas manifestações transbordaram em uma pluralidade de “pautas” que questionavam os gastos com os “megaeventos” da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016; os processos de privatização de espaços públicos, de gentrificação de territórios e de remoções de comunidades pobres que acompanhavam a preparação desses eventos; a insuficiência e má qualidade de serviços públicos essenciais como transporte, educação e saúde; a secular violência policial contra os pobres; o oligopólio dos meios de comunicação e a crise da representação: “não é só pelos vinte centavos” (cifra do aumento médio das passagens), diziam os jovens manifestantes.
Com efeito, os ativistas eram, em sua grande maioria, jovens: trabalhadores precários e estudantes de ensino médio e superior, que se apresentavam como autônomos ou integravam coletivos de orientação anárquica, comunista, socialista, autonomista, feminista, LGBTs, e também setores do movimento negro, organizações da juventude de partidos de esquerda como o PSOL, o PC do B, o PCB, e mesmo o PT. Além do Movimento do Passe Livre (pela gratuidade do transporte), responsável pela convocação das primeiras manifestações, também participaram movimentos como o MST, dos camponeses sem terra, MTST e MNLM, dos sem teto e de luta por moradia, além de organizações de professores. Após as primeiras reações de repressão policial violenta (a única resposta do Estado, em todos os níveis da Federação, ao movimento), foram se formando também coletivos de ativistas dedicados à mídia livre, para reportar as violências; coletivos de jovens advogados, para a defesa jurídica dos manifestantes perseguidos; e coletivos de estudantes de medicina e enfermagem, para prestar primeiros socorros às vítimas da violência policial crescente.
Com a reiterada violência policial e as vitórias alcançadas por meio da revogação ou cancelamento dos aumentos das passagens dos transportes em dezenas de cidades, as manifestações foram refluindo em quase todo o país, continuando apenas em grandes capitais durante o mês de julho. Mas no Rio de Janeiro elas se estenderam até outubro, alimentadas pelo apoio difuso à contestação dos atos dos chefes do executivo estadual e dos legislativos estadual e local, responsabilizados pelo movimento por sua cumplicidade com o saque aos bens públicos, com a máfia dos transportes, bem como pela violência policial indiscriminada, pelo sucateamento dos serviços de educação e saúde, e pelas remoções de populações pobres. No ano seguinte, nas cidades que sediavam jogos da Copa do Mundo, incluindo o Rio, que sediaria também a partida final, as manifestações foram retomadas, mas em escala muito menor, ampliando-se a repressão policial.
Na véspera da final da Copa de 2014, com clara finalidade dissuasória em relação às manifestações convocadas para o dia seguinte, o Rio foi varrido por uma onda de prisões, e de buscas e apreensões em domicílio, que vitimou dezenas de manifestantes e ativistas de 2013-14. Daí resultou o famigerado “Processo dos 23”, no qual vinte e três jovens ativistas (sete mulheres) foram denunciados por uma série de crimes, incluindo associação criminosa armada e corrupção de menores. Desde a fase de inquérito policial, esse processo foi caracterizado por uma série de arbitrariedades, abusos de poder, ilegalidades e violações de direitos, o que motivou a reiterada concessão de habeas corpus pelas cortes superiores, contra atos coativos do Juizado de primeiro grau responsável pelo processo, e em favor da liberdade dos ativistas.
Quatro anos depois, em 17 de julho passado, o juiz do caso proferiu uma sentença insólita, pela qual os 23 ativistas (inclusive os cinco para os quais o próprio Ministério Público, como denunciante, pediu afinal a absolvição), foram todos condenados: 21 deles a penas de sete anos de reclusão, e os outros dois, a penas de cinco anos e dez meses de reclusão. É uma sentença caricatural, em sua orientação claramente autoritária, em sua falta de provas consistentes, e até mesmo em sua forma, pois se desdobra em duas séries de “copy and paste”, nas quais as razões de enquadramento das supostas condutas criminosas nas respectivas definições legais, e até mesmo as razões de dimensionamento das penas são rigorosamente repetidas para cada um dos 23 ativistas. Os enquadramentos se baseiam quase que totalmente em três depoimentos: de um ex-ativista ao que se sabe expulso do movimento por machismo, que supostamente se apresentou à polícia como informante voluntário; de um policial da Força Nacional de Segurança infiltrado no movimento sem a necessária autorização judicial, mas qualificado como agente de informações para que seu depoimento fosse validado; e de uma delegada de polícia que investigava o movimento.
A fundamentação da sentença é uma sucessão de rasteiras no bom senso. Porque foram encontrados fogos de artifício e um frasco com combustível na casa de uma ativista, todos os 23 foram condenados por associação armada. Porque havia supostamente dois jovens menores de idade no movimento, todos os 23 foram condenados por corrupção de menores, ainda que a sentença não demonstre sequer se todos e cada um dos 23 tinha conhecimento da idade dos dois menores, nem se ao menos os conheciam, em meio aos milhares de manifestantes que estiveram nas ruas. Porque fulano disse que, porque sicrano ouviu dizer que… Fuxicos, papagaiadas, ilações e suposições são tomados como provas evidentes. Enfim, a farsa repressiva habitual que se repete onde quer que haja movimento.
Para chegar aos cabalísticos sete anos de reclusão impostos a 21 dos 23 jovens, o juiz fixou as penas mínimas de cada crime num patamar muito elevado, invocando sempre, dentre outras pérolas, a suposta “personalidade distorcida” de cada um dos 23 acusados. E por quê? O próprio juiz tenta explicar: porque se insurgiram contra os poderes constituídos. Vale informar que, quando essa sentença veio à luz, dos titulares dos poderes constituídos contestados em 2013-14 no Rio, temos um ex-governador preso e já condenado a décadas de prisão, vários deputados e ex-deputados presos e condenados, além de ex-secretários de Estado, membros da corte de contas, doleiros e uma malta de gente de “mala vita” que os circundava. À luz do que a justiça federal tem revelado sobre o saque ao Rio, perpetrado durante o governo contestado pelas manifestações, erra profundamente a justiça estadual ao imputar distorção de personalidade aos que enfrentaram essas máfias: distorção de personalidade deveria ser imputada a quem não se insurgiu contra todos eles.
A condenação dos 23 é claramente um ato político de vingança (em passagem 23 vezes repetida, o sentenciador se revela chocado com a pressão sofrida pelo ex-governador por meio de uma das ocupações de 2013, o Ocupa Cabral) e de advertência em relação aos movimentos contestatórios em geral. O exercício da contestação, da desobediência civil, das liberdades de reunião e expressão é invocado reiteradamente para caracterizar a aberrante figura da “distorção de personalidade” atribuída a todos os condenados. Obviamente, esse ato de guerra contra toda uma geração disposta a lutar (contra o poder corrompido do Estado e das máfias corruptoras associadas, em favor dos direitos de todos) tem despertado indignação e solidariedade em amplos setores democráticos. Muitos, porém, especialmente setores ligados ao PT (que confundem, escandalosa e absurdamente, as manifestações multitudinárias de 2013-14 com as mobilizações conservadoras de 2015-16), têm silenciado, ou coisa pior. Isso também já se conhece de outros tempos, em outros lugares.
Quem esteve nas ruas brasileiras em 2013-14, costumamos dizer, não voltou para casa do mesmo jeito. Não esqueceu aqueles acontecimentos e não pode admitir que sejam confundidos com o que veio depois: depois que o Estado, pelo seu mastodôntico braço policial, inclusive com a participação do PT, e com apoio da mídia, escorraçou os jovens desobedientes das ruas, abrindo caminho para as mobilizações posteriores em que os participantes, incensados pela mesma mídia, confraternizavam com a mesma polícia que reprimira os que vieram antes. Continuaremos a lutar pela absolvição e a defender as liberdades de todos os manifestantes atingidos pela repressão em 2013-14. E toda solidariedade, mesmo vinda de longe, é necessária e bem vinda.
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A sentença dos 23. Artigo de Adriano Pilatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU