07 Julho 2018
Avança nova corrida bélica. Potências militares estão prestes a colocar em operação armas que escolhem seus alvos humanos, matam em massa sem correr riscos e não podem ser responsabilizadas. Surge campanha internacional pra bani-las.
O artigo é de Anne-Sophie Simpere, publicado por Outras Palavras, 05-07-2018. A tradução é de Inês Castilho e Antonio Martins.
O salão internacional da indústria de armamentos Eurosatory abriu suas portas dia 11 de junho ao norte de Paris. Ao lado dos tradicionais canhões e mísseis, a feira deve dar lugar de destaque à terceira grande ruptura tecnológica no campo militar: depois da pólvora e depois a bomba nuclear, é chegado o tempo dos robôs armados e cada vez mais autônomos. Essa “inovação” é tema de um intenso debate. Que grau de autonomia podemos dar a uma máquina para identificar e atacar um alvo? Deveríamos já proibir essas armas? Centenas de cientistas e ONGs de defesa de direitos estão em alerta.
O Eurosatory, um dos maiores salões internacionais de armamentos, abriu neste 11 de junho em Paris. É uma oportunidade para descobrir como a indústria militar está renovando a biodiversidade planetária à sua maneira… O conceito de uma arraia de titânio e alumínio dotada de câmeras de vigilância e repleta de explosivos foi desenvolvido na Turquia. Um drone tipo morcego foi projetado por cientistas norte-americanos. Enxames de nano-drones, não maiores que insetos e capazes de atacar em grupos e independentemente, são testados pelo Exército dos EUA. No lado chinês, há grupos de robôs, semelhantes a cardumes de peixes, que são liberados em mar aberto.
Esses programas de pesquisa podem parecer anedóticos. São no entanto o reflexo de uma ruptura tecnológica em curso que abala o mundo militar: a revolução robótica, ou “robolução” segundo Gérard de Boisboissel, secretário geral da cátedra de cyberdefesa e de cybersegurança da Escola Militar de Saint-Cyr, a mais famosa da França. “Desde os anos 2000, há pesquisas sobre a miniaturização, os processadores. A Direção Geral de Armamentos da França trabalha com start-ups. Nós caminhamos para sistemas de armas cada vez mais autônomos”, estima Tony Fortin, do Observatório dos Armamentos.
Exemplo emblemático da tendência: os drones armados, novos acessórios indispensáveis sobre os campos de batalha e cujos assassinatos a distância foram controversos por vários anos (leia, em Outras Palavras, “Drones: dossiê de uma guerra suja”). A seu lado, encontra-se uma miríade de robôs de guerra, como Dogo, pequena máquina israelense montada em lagartas e armada com uma pistola 9mm; Spot, o “cão robô” que acompanha os marines norte-americanos; ou Uran-9, um tanque russo armado pilotado à distância e já posicionado na Síria. Sem esquecer o soldado SGR-A1, um robô militar sentinela desenvolvido pela Samsung que vigia a fronteira entre as Coreias do Sul e do Norte. Ele é capaz de detectar alvos e disparar automaticamente.
“Muitos soldados ficaram traumatizados com a experiência de combate corpo-a-corpo, particularmente em Kosovo. Para os Estados e os estados-maiores, a robotização permite que os soldados guardem distância, evitando mortes e traumas que geram polêmica”, analisa Tony Fortin. Para a empresa de defesa Thales, a inteligência artificial permite “retirar o humano de tarefas monótonas, sujas ou perigosas”. Ao robô o trabalho sujo! Outro argumento dos defensores da “robolução”: as máquinas seriam mais rápidas, previsíveis e desprovidas de sentimentos como o estresse, a tensão, a raiva… Em suma, despojadas de qualquer afeto que possa influenciar as decisões, elas seriam mais confiáveis do que um humano.
“Porém, um algoritmo não pode ter a mesma capacidade de análise que um cérebro humano, a faculdade de avaliar uma situação específica”, insiste Tony Fortin. “Entre as limitações dessas máquinas está sua incapacidade de agir fora do escopo de aplicação previsto”, reconhece-se em “Future Shocks”, um estudo prospectivo da Secretaria Geral de Defesa e Segurança da França (SGDSN), que dedica parte de suas análises aos robôs militares. Em outros termos, uma máquina não pode reagir senão nos limites de sua programação, o que restringe sua capacidade de julgamento e adaptação ao contexto. Inquietante, já que a ideia aqui é de permitir que ela atire nas pessoas.
Há três anos, mais de cem especialistas e cientistas do mundo inteiro, entre os quais o físico Stephen Hawking, falecido em março passado, o especialista em informática Stuart Russell (pioneiro em inteligência artificial) e mesmo Elon Musk (dono da fábrica de automóveis Tesla), escreveram uma carta aberta às Nações Unidas para alertar sobre os riscos ligados à proliferação dos “robôs assassinos”, que qualificavam de risco para a humanidade. Segundo eles, de custo menor e mais fáceis de obter que a arma nuclear, as armas autônomas poderiam cair nas mãos erradas e possibilitar assassinatos em massa, treinados para atingir, por exemplo, grupos étnicos específicos. Esse receio é ilustrado de modo muito realista por um vídeo chocante (ver acima) apresentado ano passado na Convenção das Nações Unidas sobre Armas Convencionais, em meio à campanha contra os robôs assassinos. Esse vídeo mostrava centenas de minidrones armados e equipados com detectores de reconhecimento facial lançados em meio urbano, tendo por missão abater governantes inoportunos ou estudantes rebeldes.
Lançada em 2013, a campanha internacional contra os robôs assassinos reúne hoje mais de 70 ONGs em 20 países, dos quais a Anistia Internacional, a Handicap Internacional e a associação Cidadãos da Ciência (Sciences citoyennes) na França. “Para nós, o princípio de permitir que uma máquina escolha matar um humano é uma linha vermelha. É inaceitável”, explica Mary Wareham, coordenadora da campanha. Além dos argumentos éticos, o problema é também legal. Como fazer que se respeite o direito internacional humanitário quando máquinas tomam a decisão de matar? Como assegurar que a máquina diferencie civis de combatentes? E quem deve ser responsabilizado em caso de violação de direitos?
A França lançou o debate ao nível das Nações Unidas em 2013. Depois de reuniões informais de grupos de especialistas, há hoje sessões periódicas pra debater o assunto. Enquanto as ONGs esperam um tratado proibindo as armas autônomas, os debates tropeçam sobre a definição do que é um “sistema de arma letal autônoma”. Para Alice Guitton, embaixadora representante permanente da França depois da Conferência do Desarmamento, é difícil obter uma definição consensual sobre os sistemas letais autônomos, especialmente em razão de sua natureza dual: muitas tecnologias são de fato usadas tanto no campo civil como no militar. “A mistura de gêneros é total: encontramos drones em grandes magazines. É um problema: o equipamento de amanhã é desenvolvido no mundo civil, sem controle, e é mais difícil regulamentá-lo”, ressalta Tony Fortin.
A definição do grau de controle humano necessário é também muito sensível. “Em geral, há duas funções críticas em matéria de combate: identificar os alvos e recorrer à força. Para essas duas funções pensamos que é necessário sempre haver um controle humano. Os Estados fazem muito esforço para dizer que seus armamentos ainda são semi-autônomos, e não autônomos. Nós começamos a nos perguntar se é mesmo sempre esse o caso”, observa Mary Wareham. Segundo a diplomacia francesa, os robôs assassinos ainda não existem. Mas onde acaba o controle “significativo” do humano? Será que o soldado controla o processo integral de decisão quando a máquina lhe submete uma quantidade gigantesca de informações tratadas automaticamente, numa velocidade inatingível pelo cérebro? E o que pensar do robô da Samsung, capaz de matar automaticamente na fronteira coreana?
Antes que um tratado restritivo, a França e a Alemanha propõem uma declaração política. “Recordamos os princípios do direito internacional humanitário, e nosso compromisso com um controle humano ‘significativo’ sobre a máquina”, explica Alice Guitton. “É um modo de avançar com todo o mundo. Isso não exclui que haja outras etapas, mas não deve tardar. Uma declaração política é uma solução intermediária para aqueles que recusam qualquer regulamentação.” Os Estados Unidos seriam os principais opositores, o Reino Unido não iria querer a interdição, China e Rússia seriam muito prudentes. A França parece mais engajada: Emmanuel Macron até mesmo declarou-se “categoricamente contra” as armas letais autônomas.
O Parlamento Europeu proibiu a destinação, para armas autônomas, de recursos do novo fundo europeu para a pesquisa militar, mas o Conselho Europeu e a Comissão Europeia reverteram a decisão. Segundo a SGDSN francesa, “a robotização associada a capacidades de inteligência artificial irá se impor inevitavelmente nos campos de batalha, devido a seus múltiplos trunfos. A função letal destes robôs será apenas uma opção adicional aos dispositivos de tecnologia dupla”. Assim como o armamento dos drones era “apenas uma opção”, para a qual a França também pendeu, após reticências iniciais. No Niger, os drones Reaper podem agora ser equipados com mísseis.
Mary Wareman, da campanha contra os robôs assassinos, continua otimista: “Temos forte apoio, a maioria dos países é a favor de um texto que restrinja [as armas autônomas], 26 países propõem a interdição total, a comunidade científica está mobilizada… Mesmo os militares estão divididos: uma parte avalia que há uma certa ética da guerra, á qual uma máquina não pode responder. Não é impossível proibir um tipo de arma. Nós fomos capazes de fazê-lo contra as minas anti-pessoais, que eram amplamente utilizadas”. Para a campanha contra os robôs assassinos, uma simples declaração pólica seria algo ineficaz. É preciso um texto jurídico internacional.
“Com a robotização, os militares afastam-se do campo de batalha, mas os civis continuam a ser mortos”, lembra Tony Fortin. Bem adaptados aos meios urbanos, mais acessíveis que as armas nucleares, certamente eficazes para o controle de multidões e a vigilância, as armas robotizadas inquietam, com razão, os defensores dos direitos humanos. Desde 2015, o relator especial da ONU sobre as execuções extra-judiciais propunha uma moratória: “O complicado é a relação de forças com os governos: as sociedades civis têm muita dificuldade de agir”, deplora Tony Fortin. No terreno militar, os civis continuam a ser mortos, mas estão excluídos dos debates. Os representantes da sociedade civil internacional tentarão fazer ouvir sua voz em agosto, na próxima sessão das Nações Unidas sobre o tema.
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Robôs assassinos, a nova ameaça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU