18 Abril 2018
"Uma onda avassaladora de projetos de lei sobre terra e gente sem-terra, indígenas, quilombolas, órgãos públicos criados para sua proteção e defesa, está crescendo no Congresso Nacional visando apertar ainda mais o torniquete da pobreza e da miséria sob as quais vive esse povo", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
No dia 17 de abril de 1996 foram assassinados 19 agricultores sem terra, pela força pública do Pará, em Eldorado do Carajás. Repetia-se mais um dos muitos conflitos por terra e pelo atraso na implementação da reforma agrária que a nossa história registra. A violência da repressão policial a esse contingente de povo com direito de acesso a terra foi de tal ordem que repercutiu no mundo todo, ao ponto de a data passar a ser lembrada como dia internacional da luta campesina, uma espécie de “1º de maio do campo.”
Um martírio como esse, vergonhosamente semelhante ao de tantos outros já registrados no passado do Brasil, deveria ter sido mais do que suficiente para as generosas promessas constitucionais de garantir os direitos sociais do povo camponês e pobre do pais pudessem ser cumpridas. Bem ao contrário do verificado depois e volta a acontecer com frequência trágica no Brasil.
Todos os dias a mídia mais servil ao agronegócio e aos interesses do capital nativo e transnacional sobre o nosso território, continua noticiando violências como as de Eldorado do Carajás, atribuindo somente à multidão de suas vítimas a violação das leis, confirmando aquela conhecida crítica de Brecht a esse juízo, segundo a qual são elas as responsáveis pelas injustiças que sofrem.
Nenhuma das disposições constitucionais e legais vigentes, punindo trabalho escravo, grilagem de terras, depredação do meio-ambiente, enfim, qualquer obrigação inerente ao trabalho, à natureza mesma da terra, como bem comum da humanidade, essencial a vida de todas/os, recebe alguma lembrança nessas publicações. O mesmo acontece, raras exceções à parte, com o princípio constitucional da função social da propriedade.
Não se falando sobre o que existe, mas é tratado como se não existisse, seguem-se os enterros de sem-terras e de sem-tetos, explicados e até justificados por centenas de sentenças judiciais prolatadas nas conhecidas ações de reintegração de posse, já execradas pelo povo pobre.
Uma onda avassaladora de projetos de lei sobre terra e gente sem-terra, indígenas, quilombolas, órgãos públicos criados para sua proteção e defesa, está crescendo no Congresso Nacional visando apertar ainda mais o torniquete da pobreza e da miséria sob as quais vive esse povo. Assim como o projeto do deputado Jerônimo Goergen, aqui já comentado anteriormente, visa criminalizar qualquer protesto público dessas/es brasileiras/os contra a repressão que sofre - como se de terrorismo isso não passe - outros já estão a caminho de discussão e quase certa aprovação, tão grande é a maioria parlamentar interessada nesse descaminho.
A Agência Estado noticia que o deputado Nilson Leitão da FPA (Frente parlamentar agropecuária), líder tucano na Câmara dos deputados, está articulando um projeto de lei modificando “o processo de licenciamento ambiental do país”. Restringe a proteção legal vigente sobre áreas indígenas, reduz a competência da Funai, a respeito, bem como a do Ibama, sobre meio ambiente, transferindo para Estados e municípios “definir normas regionais.”
Mesmo sendo grande a profundidade das mudanças em prejuízo da terra e da gente da terra, introduzidas por este projeto, Nilson Leitão manifesta pressa, sob a razão autoritária e estúpida de que “quem pode mais chora menos”, de acordo com a mesma fonte de notícias.
Um outro projeto de lei do mesmo deputado pretende modificar o capítulo do Código de Processo Civil que trata das ações possessórias, “em caso de invasão coletiva, permitir o uso de força policial nas situações de desforço imediato e criar o crime de esbulho possessório coletivo e aumentar as penas para o esbulho possessório simples.”
O abuso do poder e dos direitos do sistema de repressão característico desse estamento parlamentar é ilimitado. O mínimo que se poderia reservar ao Poder Público, em matéria ambiental, seria o de conceder licença para qualquer projeto de potencial agressividade à natureza, ao meio ambiente. Isso é considerado entrave à “livre” e irresponsável iniciativa do poder econômico capitalista e predatório. Agora se pretende dar licença ao seu insaciável apetite de invasão das terras vulneráveis do país, como já são as de indígenas e quilombolas.
O Incra e a Funai, já subtraídos, de fato, de qualquer das suas importantes atribuições, agora serão reduzidos a fachada. Passam a ser, pelo primeiro e pelo segundo projetos, órgãos do que marca um tipo de lei, como a de todos os de mesmas origens e mesmos fins: a hipocrisia de manter a aparência de uma proteção e defesa de gente e terra sem qualquer possibilidade de atuação prática. A licença ambiental, de licença mesmo passa a ser licenciosidade e a invasão de terra indígena e quilombola mera aplicação de lei. O que já foi homologado anteriormente, em defesa de povos tradicionais não constitui mais direito adquirido deles. Tudo pode ser revisto e castrado de qualquer efeito. Nas ações possessórias movidas contra multidões pobres, as mãos de Poder Judiciário ficam privadas até de chamar o Poder Público ao feito ou viabilizar qualquer tipo de negociação.
Vale tudo para projetos de lei como esses dois. No entender dos seus promotores, gente pobre sem-terra e sem-teto só atrapalha, como atrapalhavam os 19 assassinados em Eldorado do Carajás. Para o capital e o mercado não passam de um estorvo a ser removido com violência.
O dia internacional da luta campesina, porém, não esquece aquele martírio e hoje, em todo o mundo, celebra a memória das/os sacrificadas/os num outro e sinistro culto: o de um sistema econômico e político impiedoso que, em nome da “segurança jurídica” revela um medo extraordinariamente covarde, tal é a desproporção e a desigualdade do seu poder em relação ao povo que esse sistema de opressão massacra.
Os 19 de Eldorado do Carajás, assim, continuam vivos, a cada resistência daquelas heroínas e heróis que resistem todos os dias. No campo e na cidade, bem ao contrário do medo das/os opressoras/es, ocupam, com extraordinária coragem, terras esbulhadas pela ganância e pelo egoísmo, pondo em risco até as suas vidas para defender sua dignidade e cidadania, seus direitos sociais, não só os próprios mas o de todo o povo pobre do campo e da cidade. Benditas/os sejam.
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17 de abril: o que inspira o massacre de Carajás a novos projetos de lei - Instituto Humanitas Unisinos - IHU