16 Novembro 2017
“A redução da tradição católica a um catolicismo medieval imaginário tem consequências significativas para a vida intelectual da Igreja Católica nos EUA, e para a maneira como ela percebe e responde “politicamente” às mudanças sociais e cultuais dos últimos 50 anos”, analisa Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University. O seu mais recente livro intitula-se “Catholicism and Citizenship. Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century” (Liturgical Press, 2017), em artigo publicado por Commonweal, 13-11-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, “não é surpresa que a Idade Média substituiu o período moderno no novo cânone do catolicismo neotradicionalista; a distância fornecida pelo tempo dá uma impressão conveniente de estabilidade. O problema é como ele está sendo usado para uma função puramente antimoderna; é uma visão ideológica da história, e um cul-de-sac [becos-sem-saída] muito perigoso, teológica e politicamente”.
No dia 31 de outubro deste ano, os católicos e protestantes marcaram, com espírito ecumênico e em tom polêmico, o aniversário do começo da Reforma. Poucos dias depois – 4 de novembro – veio a festa de São Carlos Borromeu, um dos grandes santos da Contrarreforma, ou “Reforma Católica”, ou ainda do “catolicismo moderno primitivo”, dependendo da interpretação histórico-teológica preferida dada a este longo período.
Borromeu, Santo Inácio de Loyola, São Felipe Neri e outros estiveram, certa vez, associados com a “idade de ouro” do catolicismo confessional, mas hoje esta época não parece tão dourada mais. Algumas das reações contra o Papa Francisco parecem ser a expressão da (ou parecem expressar um novo encantamento com a) cristandade medieval.
O debate atual sobre o pontificado de Francisco revela uma abordagem interessante da história, especialmente entre os que acusam o papa de promover o caos nas formas da instabilidade disciplinar e incerteza teológica entre os fiéis. Ele pressupõe uma visão particular deste pontificado e do chamado “catolicismo do Vaticano II”, em oposição à narrativa histórica do período pré-Vaticano II como um tempo de estabilidade e certeza. Há os que acreditam que o Vaticano II marcou o início de uma era de crise e desafios existenciais no catolicismo. Citam dados sobre a afiliação religiosa em declínio, a queda no número de clérigos e religiosos e apontam para os escândalos sexuais e financeiros. Mas é, na verdade, a mudança nos costumes sexuais que levam os críticos do Vaticano II a ver o colapso do catolicismo como um fruto do Concílio. Além disso, a visão deles sobre os papas destes últimos 50 anos se solidificou: Paulo VI é visto como um enigma, uma vítima – na melhor das hipóteses – de sua própria ingenuidade sobre a possibilidade de resgatar o catolicismo do progressismo radical; João Paulo II é poupado da associação com o Vaticano II e o pós-Vaticano II por meio de sua identificação com o anticomunismo e sua mensagem antiabortista; enquanto Bento XVI tem estado sujeito à apropriação neotradicionalista. Quanto ao Papa João Paulo I – que serviu por apenas 33 dias e de quem Francisco recentemente reconheceu as “virtudes heroicas” e, portanto, encontra-se no caminho para uma possível santidade –, resta saber se a Igreja descobrirá o “centrismo do Vaticano II” com o qual ele se identificava.
Esta leitura apocalíptica do Vaticano II não é novidade. Mas a forma como os seus adeptos, hoje, veem a história pré-Vaticano II – especialmente o período entre a Idade Média e a atualidade – é nova, e muito mais nostálgica. Já na época do Vaticano II, a oposição dos céticos ou antagonistas das reformas conciliares tendem a separar os dois mundos: a Igreja pré-Vaticano II e a Igreja do Vaticano II – uma marcada pela certeza e a outra pela incerteza; tradição e estabilidade x reforma e revolução. Naquela época, durante os debates conciliares e o começo da Igreja pós-Vaticano II, a Igreja pré-Vaticano II era vista como mais simples, já que geralmente estava identificada com o Vaticano I (na maior parte, com a noção da primazia papal e da infalibilidade), com o Concílio de Trento e com a Igreja tridentina.
A verdadeira narrativa histórica da era pós-Vaticano II ainda precisava tomar forma. Porém o trabalho dos historiadores nestes últimos 50 anos tornou o quadro da Igreja pré-Vaticano II mais complicado do que fariam aqueles chocados pelo Vaticano II. O período pré-Vaticano II, na realidade, não era mais estável – em termos teológicos, sociais e políticos – do que iriam ser os anos pós-Vaticano II. Por exemplo, embora o Concílio de Trento (1545-1563) possa ter ajudado a centralizar o poder no papado e “romanizado” o catolicismo (na liturgia e em outras áreas), ele também levou a um longo período de crises na aplicação das reformas introduzidas.
Para alguns, como o estabelecimento de seminários para a formação presbiteral, mais de um século se passaria antes que a maior parte das dioceses a implementasse. Roberto Bellarmino, um dos teólogos mais importantes do período pós-Trento, enviou ao Papa Clemente VIII um memorando na virada do século XVII indicando que o concílio havia sido um fracasso e que se fazia necessário um outro concílio.
Em seguida, houve as guerras religiosas que devastaram a Europa até 1648 (terminadas por um tratado de paz internacional que humilhava o papado ao reduzir o seu papel no mundo), bem como a luta católica feroz interna sobre “o que aconteceu em Trento” (o conflito entre o padre veneziano e estadista Paolo Sarpi e o jesuíta romano Pietro Sforza Pallavicino é particularmente ilustrativo), que só se encerrou na segunda metade do século XX com a “História do Concílio de Trento”, obra em quatro volumes de Hubert Jedin.
A corrupção na Roma papal condenada por Lutero fora dissipada somente no final do século XVII, sob os papados de Inocêncio XI e Inocêncio XII – isto é, quase dois séculos depois da viagem de Lutero a Roma. Em outras palavras, os anos pós-Trento não exemplificam, na verdade, a noção de um cristianismo perfeitamente estável.
Os anos pós-Vaticano I dificilmente são um exemplo melhor. Este período ficou marcado não só pelo pequeno cisma dos católicos que se recusaram a aceitar as novas doutrinas a respeito do poder papal, mas também – e isso é o mais importante – pela tragédia mais grave na história intelectual moderna do catolicismo: a purga antimoderna iniciada em 1907 sob o comando de Pio X (hoje São Pio X) e o serviço secreto do Vaticano que ele criou para espionar os teólogos. A declaração da infalibilidade papal era uma resposta a – mas não uma solução para a – perda do poder temporal e do isolamento internacional do Vaticano. Depois, seguiu-se a ascensão do marxismo e a cooperação católica com o nacionalismo, levando à Primeira Guerra Mundial, ao fascismo e ao nazismo. A cooperação dos católicos franceses na Action Française levou Pio XI dispensar o jesuíta Louis Billot de seu título de cardeal em 1926. Estas coisas parecem sinais de estabilidade?
Vejamos também o que o futuro Papa João XXIII disse em suas visitas a paróquias e dioceses pela Europa nas décadas de 1920 e 1930, primeiro como secretário de seu bispo no norte da Itália, depois como enviado papal para angariar verbas a missões no começo dos anos 20 e, finalmente, como diplomata papal na Bulgária. Nesse país, ele ficou surpreso com o estado miserável da disciplina eclesiástica, especialmente com respeito à obediência e à castidade entre o clero. Sobre um padre que tinha, de fato, uma família, o futuro papa observou: nisi caste, saltem caute – “se não se consegue ser casto, pelo menos tenha cautela”. O debate sobre o celibato não é um fenômeno pós-Vaticano II; antes do concílio, alguns grupos de bispos exigiam que se abordasse a questão. Não só foram ignorados, mas a petição deles foi expurgada do registro oficial do Vaticano II, como descobriu há poucos anos o historiador da Igreja brasileiro José Oscar Beozzo.
Portanto, o constructo de um período tumultuado pós-Vaticano II versus a calmaria dos períodos pós-Trento e pós-Vaticano I parece menos credível. E talvez isto explique o neomedievalismo de certas vozes dentro do catolicismo americano, uma espécie de duplicação das certezas do passado. Não são só os tuítes de uns poucos tradicionalistas radicais católicos, mas algo que parece estar acontecendo no nível intelectual também. Tive essa impressão com algumas das obras que li nos últimos cinco anos ou mais.
Entre o “Defending Constantine”, de Peter J. Leithart, e o “The Unintended Reformation”, de Brad Gregoryi, parece que até mesmo o pensamento teológico está tendendo em direção à cristandade medieval. (Não se trata apenas de uma síndrome católica, como ilustram as tensões entre as comunidades “tradicionais” e “modernas” ortodoxas orientais nos EUA). Houve também uma série de artigos publicados em First Things sobre a necessidade de se redescobrir uma cristandade viável e, claro, uma cosmovisão dedicada, expressa por Rod Dreher em “The Benedict Option”. Em artigo recente de Ross Douthat dedicado à Reforma Protestante, podemos claramente ver o enquadramento da Reforma como notoriamente próximo ao pré-Vaticano II (e à cultura anti-Vaticano II da FSSPX) – um “Weltanschauung católico”, isto é, um enquadramento do nosso tempo na genealogia dos “erros modernos”: a Reforma que destrói a unidade da cristandade ocidental e que inaugura o liberalismo social, político e teológico que, finalmente, nos deu Donald Trump. Um fascínio renovado com o medievalismo teológico também parece relacionado com a reação de setores particulares do cristianismo anglo-europeu, do catolicismo branco americano a desafiar a perspectiva da chamada “América pós-cristã” e a solicitação de um paradigma teológico que sustente uma ordem mundial “pós-liberal”.
Na qualidade de católico europeu italiano que se mudou para os EUA em 2008 e que tem lecionado e escrito sobre o catolicismo, penso ser impossível superestimar a influência clara da imaginação medieval católica no catolicismo americano em comparação a todas as outras igrejas católicas no mundo. Esta influência é poderosa, vista não apenas na arquitetura dos campi universitários, mas na maneira como a Igreja deste país quer ser percebida “pelo mundo” em geral. Além do cânone teológico que abrange os séculos entre Agostinho e Tomás de Aquino, parece haver bastante espaço tanto para o antimodernismo quanto para o pós-modernismo. Sempre houve um movimento contrário ao Vaticano II, mas também tem existido um “catolicismo aconciliar” mais sutil – como se o Vaticano II nunca tivesse acontecido ou que errou em muitas coisas (a narrativa antimoderna), ou que o Vaticano II é um passé e nada tem àquilo que a teologia católica (incluída a teologia política) foi entre o período moderno inicial (Erasmo incluído) e a nouvelle théologie que levou ao Concílio Vaticano II.
Além disso, o chamado movimento de “reforma católica”, do final do século XV em diante (incluindo Trento), parece ter se tornado demasiado moderno para os que leem a hermenêutica ratzingeriana da “continuidade versus descontinuidade” como uma rejeição, pura e simples, de qualquer desenvolvimento histórico-teológico na tradição católica, esquecendo-se que Bento XVI falou sobre “continuidade e reforma”.
O “ressourcement” [retorno às fontes] como antimodernismo e anti-histórico, e o pós-modernismo como pós-tradicional e pós-histórico: tal polarização de visões da história da Igreja é um dos aspectos particulares da recepção teológica do Vaticano II nos EUA. O Papa Francisco não causou esta involução intelectual, mas, hoje, ele precisa lidar com ela. Veja-se a reação negativa às suas recentes declarações sobre a pena de morte; as reações contra Amoris Laetitia surgem aqui também.
A redução da tradição católica a um catolicismo medieval imaginário tem consequências significativas para a vida intelectual da Igreja Católica nos EUA, e para a maneira como ela percebe e responde “politicamente” às mudanças sociais e cultuais dos últimos 50 anos. Não é surpresa que a Idade Média substituiu o período moderno no novo cânone do catolicismo neotradicionalista; a distância fornecida pelo tempo dá uma impressão conveniente de estabilidade. O problema é como ele está sendo usado para uma função puramente antimoderna; é uma visão ideológica da história, e um cul-de-sac [becos-sem-saída] muito perigoso, teológica e politicamente.
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Antes era melhor? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU