25 Mai 2017
“As ‘razões do silêncio’ levam Ratzinger e Sarah a uma espécie de ‘silêncio da razão’: quem toma a palavra é uma emotividade perturbada pelo Concílio, pela Reforma e pela modernidade, à qual se quer contrapor um modelo idealizado e irreal. Descarregam-se todas as cultas, sem discernimento, sobre reviravoltas recentes.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontificio Ateneo Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 21-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A discussão que se seguiu à difusão da notícia sobre um “prefácio” (ou posfácio) que J. Razinger escreveu para o novo livro do cardeal Sarah, dedicado ao tema do “silêncio”, não pode evitar de enfrentar uma dupla frente de questões, que se reúnem em torno do tema do “silêncio” e que poderiam ser distinguidas nestes dois níveis:
a) por um lado, a questão diz respeito ao “silêncio” como “tema litúrgico” e, como tal, merece uma leitura atenta e livre de preconceitos. Ninguém duvida de que hoje a recuperação de uma “experiência do silêncio” é decisiva para a qualidade e a autenticidade da ação ritual. O que está em questão é qual é o caminho, o método e a abordagem correta para conservar e promover tal silêncio.
b) por outro lado, deve-se reconhecer que, mesmo no fronte instituição, em particular nas relações entre “papa” e “papa emérito”, o silêncio é uma dimensão fundamental para garantir – rebus sic stantibus – a clareza no exercício da autoridade, evitando conflitos ou abusos de poder.
Um breve raciocínio em torno de ambos esses perfis e do seu delicado entrelaçamento permitirá esclarecer melhor o porte das objeções levantadas e o seu caráter objetivo e desapaixonado.
Há um século, o Movimento Litúrgico fez as contas com uma redescoberta do valor do silêncio para a ação litúrgica: a partir da primeira obra de O. Casel (De phlosophorum graecorum silentio mystico) às mais recentes reflexões de Giorgio Bonaccorso (Il tempo come segno: vigilanza, testimonianza, silenzio, EDB, 2004) – para indicar apenas dois dos especialistas do tema – poderíamos identificar uma redescoberta da “mediação ritual do silêncio” que atravessa todo o século.
A ação ritual, em outras palavras, constitui uma “mediação do silêncio”, que a liturgia realiza de modo multimídia: a música, o gesto, a imagem, o espaço preparam, acompanham e estruturam um “encontro íntimo” com o Senhor e com os irmãos, que exige silêncio, como toda intimidade.
Essa linha de redescoberta, no entanto, sabe que o silêncio ritual não é gerado acima de tudo por subtração, mas por sucessão, por sequência e por contraste. Sobretudo, sabe que o silêncio litúrgico é “palavra a partir do e para o silêncio” e “ação a partir do e para o silêncio”.
Muitas vezes acontece, no entanto, que a proposta do silêncio seja guiada por uma preocupação não litúrgica, mas extralitúrgica: alimenta-se de uma lógica “antimodernista” que facilmente se inclina para ver o silêncio como “negação da palavra” e “negação da ação”. Essa modalidade de compreensão da importância do silêncio não tem raízes na liturgia, mas na apologética antimodernista.
Ela identifica facilmente na Reforma Litúrgica, na redescoberta da Palavra e na retomada da “participação ativa” verdadeiras distrações do silêncio, uma espécie de “substituição arbitrária de Deus pelo homem”. Para esse modelo de leitura da liturgia, o silêncio garante o primado de Deus, enquanto a ação, a palavra e a adequação dos ritos seria abuso humano sobre a tradição, que, como tal, impede o silêncio.
Nessa linha, coloca-se, há muitas décadas, o pensamento de J. Ratzinger e a sua retomada, em nível menos profundo e mais ingênuo, por parte de R. Sarah. Em torno do “primado do silêncio”, eles, embora em modos diferentes, propuseram uma releitura da história e do evento eclesial que é marcada por um dualismo insuperável: a Reforma Litúrgica seria o “trauma” que teria interrompido a tradição, e seria preciso recuperar continuidade mediante uma “reforma da reforma”.
O desenvolvimento do tema do “silêncio” se presta perfeitamente para essa operação, que não é litúrgica, mas apologética. O lamento sobre a falta de silêncio nas liturgias de hoje seria culpa da Reforma, da ênfase na palavra e do ativismo pós-conciliar. Esse discurso é emocional e desprovido de fundamento histórico ou de argumentação racional. As testemunhas dos tempos passados sabem muito bem que não é assim. E que, voltando atrás no tempo, não se encontra silêncio, mas zumbido, paralelismo de ações, “função” mais do que celebração.
Nesse caso, as “razões do silêncio” – que são fortes e de autoridade – levam Ratzinger e Sara a uma espécie de “silêncio da razão”: quem toma a palavra é uma emotividade perturbada pelo Concílio, pela Reforma e pela modernidade, à qual se quer contrapor um modelo idealizado e irreal. Descarregam-se todas as culpas, sem discernimento, sobre reviravoltas recentes.
O Movimento Litúrgico – de Casel a Bonaccorso –, ao contrário, sabe que, para “favorecer o silêncio”, é necessário atravessar a Palavra e a ação sacramental, redescobrindo as suas lógicas secretas, as exigências de ação e de tato, de visão e de imaginação, de movimento e de canto. O silêncio não embalsama a assembleia, não reivindica uma retração geral e uma paralisia da ação, mas exige, sim, uma ação e uma palavra coral. Esse é o ambiente que gera o silêncio místico e a ação silenciosa.
A razão dessa “cisão” entre silêncio e reforma litúrgica – que Ratzinger e Sarah têm em comum – é uma espécie de desespero sobre a “actuosa participatio”. E o exemplo mais ilustre desse desespero é constituído pelo motu proprio Summorum pontificum, no qual o horizonte do silêncio só se descerra mediante uma artificial e incontrolável hipótese de “paralelismo” entre as duas formas do único rito romano.
Com esse motu proprio, o pontificado de Bento, de algum modo, consagrou uma cisão: não tendo a esperança de “mediar o silêncio no rito reformado”, mediante uma ficção jurídica muito ousada, pretendeu renovar a vigência do rito não mais vigente, para recuperar um “horizonte de silêncio”.
Esse procedimento, que, de algum modo, também aparece como uma confissão de impotência, baseia-se no “preconceito apologético e antimoderno” de leitura da liturgia como “ação de Deus” e não do homem. Essa contraposição acaba duplicando a realidade, dividindo em cada passagem aquilo que é de Deus e aquilo que é do homem. E constrói um sistema blindado, em que os “direitos de Deus” abrem espaço somente e apenas mediante aquilo que “emudece o homem”. E o silêncio, aqui, é evidentemente lembrete simbólico poderosíssimo, que parece valorizar essa abordagem “assustada”.
Também no recente livro “O Último Testamento” – e, depois, no livro inédito por ocasião do seu 90º aniversário – J. Ratzinger não sai dessa visão bastante estreita da liturgia: que, talvez, pela sua própria confissão, deriva do seu invencível “Lust am Widerspruch”, do “gosto da contradição”. E R. Sarah simplesmente repete esse estereótipo não argumentado, quase o reduzindo a um slogan.
Portanto, há razões de mérito para discutir não a justa exigência de “silêncio”, mas sim o modo distorcido e apologético de se referir ao “silêncio”, evocando novamente nostalgias da sociedade fechada, recuperação de estruturas hierárquicas, diferenças ontológicas insuperáveis, proibições e preconceitos superados.
Mas há também “razões de método” que justificariam a perplexidade em relação ao “prefácio”, mesmo no caso de R. Sarah ter escrito o “livro do século” sobre o silêncio. Justamente porque, admitindo-se o caso limite considerado, a palavra do “bispo emérito de Roma”, justamente por ter sido papa, no entanto, tem um peso e uma relevância que não é mais compatível com a sua renúncia. A renúncia do exercício do ministério determina uma condição singular da palavra de J. Ratzinger, que adquire autoridade “ipso facto”, por causa do seu ministério passado. Por isso, a “ordem do silêncio” aparece objetivamente não como uma retorção injustificada, ou como a privação de um direito da pessoa, mas como a necessária custódia de uma autoridade que não pode ser, de modo algum, “duplicada”, nem mesmo por engano.
Assim, se já seria delicado ler do papa emérito um julgamento – por exemplo – sobre vacinações ou sobre as estações da vida –, é totalmente inoportuno ouvir o seu louvor a um prefeito de Congregação recentemente tornado objeto de censuras explícitas por parte do sucessor. Uma palavra irresponsável corre o risco de se tornar “caso institucional” e “causa de divisão”, muito além das intenções com a qual foi escrita. Para essa “incontrolabilidade” da palavra, neste caso, o silêncio deveria se impor.
Eis, portanto, a necessidade de falar do silêncio, a necessidade de encontrar as antigas e novas razões do silêncio, mas sem nunca cair em tal entusiasmo pelo tema a ponto de manchar a lógica litúrgica e institucional da tomada de palavra. As razões do silêncio nunca foram tão fortes a ponto de obrigar ao silêncio da razão.
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As razões do silêncio e o silêncio da razão: Ratzinger, Sarah e o antimodernismo litúrgico. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU