31 Agosto 2017
(Milão, Àncora editrice, 2017, 96 páginas, € 12)
Foto: Capa / Divulgação
Antecipamos trecho do prefácio do livro Vedete, sono uno di voi. Intervista con Ermanno Olmi su Carlo Maria Martini. A obra vai estar nas livrarias em 31 de agosto, para coincidir com o quinto aniversário da morte do cardeal, e é o resultado de quatro anos de trabalho que envolveram o diretor e Marco Garzonio na criação - com o argumento e o roteiro escrito a quatro mãos - de um filme documentário sobre a vida de Carlo Maria Martini.
O prefácio é de Marco Garzonio, publicado por L'Osservatore Romano, 29-30 de agosto 2017. A tradução é de Luísa Rabolini.
O texto que deu origem a esse livro é o resultado de quatro anos de trabalho que nos viram envolvidos na criação e realização de Vedete, sono uno di voi (Vejam, sou um de vocês, em tradução livre), o filme sobre o cardeal Martini que teve a direção de Olmi e minha participação, junto com ele, na redação do argumento e do roteiro. Acabei reunindo uma espécie de "diário de bordo" com todas as anotações tomadas durante os nossos encontros em Milão e em Asiago, acrescentando aqui e ali detalhes relativos a declarações que Ermanno fez durante a apresentação do filme, recuperando reflexões que já vinham sendo elaboradas ao longo da produção.
Realizar esse filme foi para mim uma experiência extraordinária. Primeiro graças a um encontro pessoal com o homem Olmi. Participando dos encontros em sua casa, tive a oportunidade de conviver com ele e com Loredana, sua esposa, ponto de referência, apoio, fonte de inspiração vital, diária e apartada, mas insubstituível. Além disso, nas discussões intensas e continuas dos textos, imagens, eventos e posicionamentos do cardeal ou juízos sobre ele, tive a oportunidade experimentar outro ângulo de observação para entender o que representou Martini. Posso dizer que tive a dádiva de submeter constantemente ao crivo do olho do poeta o "meu" Martini, que eu conhecia bem, por ter escrito durante trinta anos livros e artigos. Mas que, naturalmente, precisava de alguma maneira reconfigurar-se em mim sob um perfil ainda mais espiritual. Porque o trabalho do artista leva ao resgate da crônica e do dia-a-dia, a uma altitude cada vez mais direcionada ao alto, ao céu.
Foram muitas as discussões sobre o "scalettone" (a escaleta do roteiro, ndt), como o chamava Ermanno. Crescia, enriquecia-se de detalhes e, aos poucos, tomava forma. No livro a evolução da obra encontra eco e substância, quase como uma filmagem ao vivo.
Posso dizer que nenhum dos nossos encontros se desenrolou de modo igual ao anterior. Como nenhuma das hipóteses de trabalho que fomos gradualmente prospectando, respeitou palavra por palavra nossa proposição inicial no momento do encontro. Eu preparava e solicitava documentações, a gente se encontrava, falávamos sobre o assunto e quase imediatamente era como se desfrutássemos do prazer de cavoucar e ir atrás de mais questionamentos. Todo material coletado, seja um texto de Martini, a documentação de um acontecimento histórico, uma fotografia, um recorte de jornal: tudo servia de ponto de partida para verificar a insuficiência do que havia sido encontrado e incentivava para preencher as lacunas. Com a consciência, aliás, um tanto frustrante, que mesmo a mais surpreendente conquista em termos de conhecimento não teria satisfeito a nossa curiosidade e acalmado o anseio de enveredar por novas sendas. Em suma, fomos aos poucos contagiados pelo espírito de pesquisa do homem e do cientista Martini em duas frentes, que refletiam as nossas personalidades, além dos nossos "ofícios". Em Olmi foi despertando o instinto estético, do 'inventar' (no sentido etimológico de reencontrar, de se deparar com algo que, afinal de contas, já está ali: apenas esperando para ser visto e apresentado poeticamente), do imaginar a forma adequada. Em mim exigiu respostas ao processo psicológico de Martini que tinha sido forçado a mudar, a se "transformar" de catedrático, reitor, expressão de uma elite intelectual, de uma aristocracia do pensamento, em pastor que, como diríamos hoje, na esteira de Francisco, deve trazer "o cheiro das ovelhas" para ser credível. E também essa evolução a três, de Olmi, do "nosso" Martini e minha, dessa alquimia de pessoas, de experiências, de histórias e de vivências é que o livro presta testemunho.
A entrevista é o gênero literário que melhor expressa as principais etapas de um percurso e documenta as veredas que permitem vislumbrar o fio condutor que liga a busca interior com os eventos e garante a coerência do caminho. Quando o Padre Gilberto Zini, diretor da Àncora, teve a ideia de elaborar o livro, na esteira do sucesso do Silence. Entrevista a Martin Scorsese por Antonio Spadaro, diretor do La Civiltà Cattolica, falei imediatamente do projeto com Olmi. A resposta de Ermanno foi: "Bem, bem: fica ao teu critério, que tu sabes como fazer". Pelo que aprendi a conhecê-lo, interpretei como uma necessidade interior de objetivar uma experiência e ir além. Modalidade que certamente iria somar-se a dificuldades de ordem pessoal, ditadas pelo estado de saúde, mas que refletia, no fundo, a exigência ética de não se satisfazer, de considerar o já feito como uma etapa sobre a qual não perder mais tempo, a urgência de reunir forças para avançar de forma renovada.
O compromisso deixado a meu cargo por Olmi carregou de maiores responsabilidades a recuperação dos conteúdos que seriam escolhidos e a linguagem a ser utilizada. Também porque, recentemente, ao incentivar a continuação do trabalho, Ermanno me dizia: "Eu te peço, prossiga com alegria". O objetivo era recuperar uma "fidelidade filológica" às trocas entre nós dois durante o trabalho de acerto do argumento e do roteiro e, depois da subsequente verificação da montagem. Além disso, tornava-se necessário imaginar uma estrutura narrativa que colocasse no centro palavras de Olmi, o seu inconfundível proceder discursivo, quase a sua voz. Como se costuma dizer na entrevista: ser o narrador de si próprio e de Martini, em uma progressiva identificação.
Eu tinha sido avisado de que trabalhar com Ermanno significava compartilhar uma espécie de aventura em aberto, tornar-se disponível a alterações durante o curso da obra que também poderiam contradizer as disposições assumidas no momento anterior.
Isso poderia comportar uma navegação sem instrumentos, inspirada por uma necessidade insatisfeita, quase obsessiva, de liberdade de movimento, de reinvenção. Qualquer coisa diferente daquelas formas de burocracias, de sistemas, de poderes que se alicerçam no controle, pouco condescendentes para a experimentação artística. Tive a oportunidade de verificar isso.
Um episódio é esclarecedor. Quando passamos à fase de filmagem de algumas cenas, um padre que precisava permitir as tomadas em um determinado ambiente eclesiástico queria ler e submeter à sua aprovação o script. Eu acreditava que os nomes de Olmi e Martini constituiriam por si só uma garantia. Em vez disso, argumentaram: “Há um escritório que supervisiona e há procedimentos a seguir. Não há nenhuma chance de que alguém pense que é só chegar aqui e rodar um filme”. Ponto. Finalmente, depois de e-mails, reuniões e pacientes esperas, felizmente para o filme e, de alguma forma, para o bom nome daquela estrutura da Igreja, a permissão para realizar algumas filmagens foi concedida, apesar da ausência de roteiro detalhado. A parte da entrevista em que Olmi afirma que "a liberdade é um papel em branco" constitui a reprodução exata do seu pensamento e das suas aspirações, da visão de mundo defendida por Ermanno, essencial para ele. Para me ajudar a concretizar tal forma de pensar contribuíram os momentos de confidência vividos uma década atrás, quando Olmi e eu compartilhamos a experiência, infelizmente curta, mas intensa, de “Prove di democrazia”, juntamente com muitos amigos coordenados por Marco Vitale e Francesco Gatti.
Para aquele projeto que tinha a aspiração de ter um papel de cultura cívica, de revitalização de valores da responsabilidade individual e dos valores constitucionais, Olmi escreveu um documento com uma manifestação "política" insólita para um artista, uma tomada de posição ética de grande valor ainda hoje.
Assista ao trailer do filme:
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Carlo Maria Martini no filme de Ermanno Olmi. A liberdade é uma folha em branco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU