03 Agosto 2017
No caso paulistano, onde a nova gestão tenta emplacar um “choque de mercado”, o aumento das tensões nas ruas é latente, seja através de mortes como do carroceiro Ricardo Nascimento ou intervenções do poder público sobre moradores de rua ou na Cracolândia. É sobre isso que entrevistamos o Padre Júlio Lancellotti, que acaba de solicitar proteção à Anistia Internacional.
“Ficamos muito espantados com uma operação de rapa no Brás na quinta-feira, na qual o funcionário da Inova ligou para o policial militar conhecido dele para reprimir a população. Minutos depois, chegaram vários policiais com doze na mão em cima do povo. Ele não chamou a polícia. Ele chamou ‘aquele’ policial”, comentou, ao explicar por que teme pela eclosão das milícias como mediadoras da vida pública da cidade, a exemplo do Rio.
Na conversa, Padre Júlio conta os motivos que o levaram a pedir proteção da ONG de Direitos Humanos, a crescente participação militar em temas corriqueiros da vida social da cidade, faz uma breve análise do início do mandato do prefeito João Dória e diz temer pelo esgarçamento completo de nossas relações sociais e políticas.
“Fica claro que ‘cidade linda’ é onde os pobres não podem morar (...) Estamos levando o povo ao limite do suportável”, resumiu o clérigo que há anos se destaca pelo seu ativismo na região central da cidade.
A entrevista é publicada por Correio da Cidadania, 31-07-2017.
Eis a entrevista.
O que te levou a pedir amparo da Anistia Internacional?
Nosso pedido de socorro e a situação difícil que vivemos se devem ao fato de considerarmos a população de rua como refugiados urbanos. Ninguém os quer, ninguém os aceita, em todos os lugares aonde vão as pessoas reclamam dos sem tetos e querem que saiam.
Aqui na Mooca, uma das regiões de maior incidência de população de rua na cidade, depois de locais como Centro e República, os moradores do bairro estão cada vez mais intolerantes. E o próprio Conselho Comunitário de Segurança propõe que não haja mais serviços de auxílio à população de rua, assim como em relação a mim, na Paróquia em que atuo.
Como tem sido a atuação policial na região central em relação às pessoas mais pobres ou em situação de rua?
Como há aumento da população de rua, o que percebemos é que não só a GCM como a própria PM tem entrado na repressão. Vamos vivendo uma violência e intolerância agudas, não só por parte das polícias, mas dos grupos privados de segurança. Do jeito que as coisas vão, temo que passemos a ter de lidar com milícias aqui em São Paulo também.
Esse é um ponto nunca mencionado nas notícias e debates. Você tem indícios sobre essa questão de milícias?
Existem muitos acertos e grupos articulados, por exemplo, nessa Operação Delegada, ou com pessoal que está de folga e faz trabalhos como segurança particular. Há uma grande articulação entre eles, grande mesmo.
Ficamos muito espantados com uma operação de rapa no Brás na quinta-feira, na qual o funcionário da Inova ligou para o policial militar conhecido dele para reprimir a população. Minutos depois, chegaram vários policiais com doze na mão em cima do povo. Ele não chamou a polícia. Ele chamou “aquele” policial.
Como você tem observado a questão social e em especial dos sem tetos no centro de São Paulo nesta transição de Haddad para Dória?
As coisas não mudam muito de um governo para outro. O que acontece é a interrupção de programas entre uma e outra administração, pois cada uma quer ter sua própria marca. Por isso a descontinuidade. Mas na questão da limpeza urbana, da chamada higienização, todas as administrações agem da mesma forma. Querem e conseguem promover remoções, contam com o clamor de bairros e conselhos que querem ver as pessoas retiradas etc.
Você tinha dito que Haddad seria lembrado pelas ciclovias. Como analisa essa declaração em perspectiva com a atual prefeitura? E Dória, deixará qual imagem a seguir sua atuação?
Ainda estamos no início da gestão, mas acredito que uma das marcas que “pega” é a Cidade Linda. E fica claro que “cidade linda” é onde os pobres não podem morar.
O que falar da operação policial da Cracolândia, quase dois meses após sua execução? O que de fato houve de resultados?
Todas as operações militares na Cracolândia, como em 2012 ou 2014, dão o mesmo resultado. Todas as administrações entraram lá e tiveram, basicamente, os mesmos resultados. O fluxo continua lá, porque buscam mudar os efeitos, não as causas.
Indo além de São Paulo, vimos que o Rio de Janeiro triplicou sua população de rua de 2014 pra cá, mesmo no bojo dos megaeventos esportivos e toda aquela euforia em torno da pujança do país. Como você enxerga de modo geral a questão da moradia na atualidade?
Temos discutido muito a questão do direito de morar, mesmo que não seja o direito de propriedade, através da locação social, algo possível de se fazer, sem grande custo. Mas é preciso vontade. A população que vive de forma precária nas cidades é imensa, a demanda por moradia é imensa e a oferta de lugares para se morar é cada vez menor. O número de despejos aumenta. Estamos levando o povo ao limite do suportável.
Que relação você faz entre a intervenção no centro paulistano com o atual momento político brasileiro, de um modo mais geral?
É bastante grave. Estamos vivendo um momento de endurecimento, retrógrado, um momento de retorno ao Estado Militar, de prestigiar aqueles que trazem a linguagem militar, do armamento e das mortes. O Brasil passa por uma grande encruzilhada. Ou nos tornamos uma nação ou voltaremos à escravidão.
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"Temo que São Paulo também passe a lidar com milícias”. Entrevista com Júlio Lancellotti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU