30 Junho 2017
“No Centre Sèvres, compartilhamos uma convicção que nos compromete numa real reescritura do nosso currículo de estudos, capaz de acolher a condição do humano e do crer hoje, marcados por conviver nestes contextos de pluralidade típicos da modernidade avançada”, escreve Christoph Theobald, jesuíta, professor de teologia fundamental e dogmática no Centro Sèvres de Paris e diretor da revista Recherches de Science Religieuse, em artigo publicado por Settimana News, 23-06-2017. A tradução é de Ramiro Mincato.
Segundo ele, “a ligação entre a experiência quotidiana do viver e o Evangelho deve estar no centro de toda teologia por vir. A pergunta a partir da qual se produz uma tal teologia é, portanto, "o que estou levando de interessante e significativo para o quotidiano?".
“Essa pergunta – continua o teólogo jesuíta - só pode nascer se a teologia for animada, por sua vez, por uma ardorosa paixão de ser interessante para o quotidiano dos homens e mulheres do nosso tempo. Com a consciência de que falar de modo abstrato das questões vitais para o humano que vive concretamente, é sempre, de algum modo, uma forma de violência infligida. Exatamente o que não é o Evangelho de Deus vivido por Jesus”.
De bom grado, com algumas reflexões, insiro-me no discurso aberto em SettimanaNews por Marcello Neri (Teologia Hoje: Paradoxo e reconsideração) e por Jakob Deibl (Teologia: uma carta amiga). É importante manter aberto o diálogo para pensar os caminhos de uma teologia “ad-vir”. Que haja urgência de recalibragem e revisão do percurso dos estudos teológicos hoje, é evidência que nasce da própria experiência do ensino; frente a essa, não se pode permanecer simplesmente inerte, esperando que o simples fluxo das coisas produza por si só os ajustes e mudanças necessárias.
Estou convencido de que a teologia tem em suas cordas capacidade e força para dar-se uma figura adventícia, exatamente em virtude de sua dupla adesão ao Evangelho e ao vivido concreto de qualquer pessoa. Essa é uma persuasão compartilhada no Centre Sèvres, que nos compromete numa real reescritura do nosso currículo de estudos, capaz de acolher a condição do humano e do crer hoje, marcados por conviver nestes contextos de pluralidade típicos da modernidade avançada.
Acredito ser um bom sinal que o debate aberto na Settimananews tenha tomado, desde o início, a forma do diálogo, de uma interlocução que não permanece abstrata, mas se dirige a alguém que, no espaço de rede, torna-se imediatamente alguém. Porque o sucesso na teologia ocorre quando ela consegue tornar-se evento, que não pode ser produzido enquanto tal, da palavra e da linguagem. Quando isso acontece no espaço limitado de duas horas de aulas, então entramos, todos juntos, num mundo que se constrói - saboreando deste modo o imprevisível nascimento de um momento teológico.
O evento da palavra e da linguagem a que a teologia deve voltar-se, como já dissemos, é irreproduzível como tal, mas pode e deve ser preparado da mesma maneira como se preparam duas horas de aula, no estilo em que elas são realizadas. Neste sentido, a teologia deve encontrar o caminho para superar aquela perda do quotidiano que ainda parece pesar sobre ela. E deve fazê-lo porque sua razão de ser é precisamente a de tornar plausível a fé na vida cotidiana de alguém.
Pensemos, por exemplo, no alimento, tão comum a todos, e tão particular/diversificado em todas as culturas, até mesmo em diferentes regiões da mesma cultura. Sobre este tema está trabalhando, com um grande habilidade, um meu doutorando brasileiro, a partir da experiência "culinária" de seu povo. A própria vida se torna concreta, perde toda abstração, quando convertida em alimento. E, dentro desta conversão, pode-se delinear uma articulação teológica que ocorre não só dentro da cultura, mas capaz de recuperar também toda linguagem concreta contida na Eucaristia como alimento que dá vida.
Daqui toma impulso a assimilação metafórica na articulação do discurso teológico. Isto só para dar um exemplo de como é possível recuperar o quotidiano, em torno ao qual se joga a capacidade de uma teologia por vir. Abre-se, deste modo, o horizonte para a transformação da teologia em evento de palavra e de linguagem no espaço da sala de aula. Pois, neste espaço, entra, desde o início, uma problemática, uma formulação da pergunta, que é também aquela dos estudantes - aquela que eles trazem consigo a partir de suas próprias experiências.
A teologia deveria ser a arte de apanhar esta formulação da pergunta, assim como ela se dá, considerando-a a própria questão da teologia, por um lado; e, por outro, deveria ter a habilidade de endereçar, de interagir com esta formulação da pergunta de tal modo que, no final da aula, ela possa ressoar em suas tonalidades evangélicas. Só assim podemos “pegar" realmente os jovens e moças naquele evento que chamamos de aula, e só assim se pode honrar a destinação do Evangelho ao quotidiano da vida de qualquer pessoa. Toda pergunta teológica deve poder situar-se na vida cotidiana e dali, em seguida, ser ativada como tal, isto é, teologia (não seria este o modo de abrir o caminho para uma recolocação da liturgia e do culto em nossos dias?).
A ligação entre a experiência quotidiana do viver e o Evangelho deve estar no centro de toda teologia por vir. A pergunta a partir da qual se produz uma tal teologia é, portanto, "o que estou levando de interessante e significativo para o quotidiano?". Essa pergunta só pode nascer se a teologia for animada, por sua vez, por uma ardorosa paixão de ser interessante para o quotidiano dos homens e mulheres do nosso tempo. Com a consciência de que falar de modo abstrato das questões vitais para o humano que vive concretamente, é sempre, de algum modo, uma forma de violência infligida. Exatamente o que não é o Evangelho de Deus vivido por Jesus.
Ora, o quotidiano em nossos tempos é uma figura complexa, marcada por forte uma diversificação sistêmica das esferas da vida das pessoas e por processos de extrema fragmentação do viver concreto. Aspectos estes que devem ser levados na devida conta num discurso teológico que não queira ser violento com a experiência cotidiana do viver humano. A tarefa de desenvolver uma adequada sensibilidade para esta diversificação e fragmentação pertence ao desenho de uma teologia por vir.
Assim se delineia o quadro que vai instruir a relação entre a gênese da teologia, como evento da palavra e da linguagem, situado no quotidiano de alguém, e o metadiscurso teológico que esboça o quadro sistemático de uma gênese da própria teologia. Dizendo com uma só palavra, o centramento no quotidiano não dispensa a fadiga do metadiscurso, mas porém, delineia sua própria destinação a qualquer pessoa.
Voltemos a metáfora do alimento. A teologia, como metadiscurso, é como a receita de um prato saboroso: como toda receita, não alimenta e não tem sabor. É destinada a poder satisfazer somente se acender determinada operação e habilidade. Como metadiscurso, a teologia prepara o momento em vista de uma assimilação que se realiza n’outro lugar, em qualquer lugar. Quer dizer, prepara para ceder à independência do mundo cotidiano, equipados para ousar alguma coisa exatamente ali.
Há outro aspecto que precisa ser levado em conta ao refletir sobre o metadiscurso teológico. Trata-se uma espécie de fronteira absoluta entre oralidade (da lição) e escrita (do texto). O escrever comporta sempre um movimento objetivo, que é a própria condição do meio textual. Agora, essa objetividade da escrita recolhida num texto teológico deve realizar-se em uma abordagem que saiba honrar efetivamente seu originar-se no quotidiano. Ou seja, deve colocar em campo uma operacionalidade interna ao próprio texto que não faça do seu movimento objetivo uma abstração com relação ao quotidiano. Somente isto pode preservar o necessário metadiscurso teológico de transformar-se em violência em relação a vida quotidiana de alguém.
O metadiscurso, portanto, destina-se à abertura de um outro espaço que o dele. É nesse outro lugar que a teologia, adequadamente equipada, é chamada a sensibilidade de um fino faro para os problemas concretos do humano com os quais tem o dever de dialogar. Não falando de modo geral, mas falando com alguém, com alguma pessoa concreta.
Capaz de imersão até o centro da vida, até nas tramas profundas dos dias humanos. Ingresso necessário para conduzir o cristianismo e a fé fora do mecanismo, quase mágico, de uma transmissão do Evangelho baseada unicamente na homogeneidade do espaço social - condição que, simplesmente, não existe mais, e que, provavelmente não é nem mesmo adequada à intenção do Evangelho.
O como alguém fala e se dirige, também em teologia, torna-se questão decisiva. Não outro foi o estilo de Jesus, nas parábolas e nos discursos indiretos preparados para dar espaço à liberdade de todos e para trazer para fora a fé de fundo que cada um traz consigo na cotidianidade dos dias.
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Teologia e o sabor do quotidiano. Artigo de Christoph Theobald - Instituto Humanitas Unisinos - IHU