06 Setembro 2019
Sempre em busca do sentido e da felicidade, a sabedoria implica num justo olhar para consigo mesmo e para com o mundo. Mas, também, é um dom de Deus e do Espírito, como proclamam Salomão e o Salmista. A sabedoria de Jesus é, contudo, paradoxal, porque traduz a novidade do Reino que ele prega. Conhecer os desígnios do Senhor é a grande questão do crente que deseja colocar a sua vida de acordo com a sua fé.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (08 de setembro de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
1ª leitura: “Qual é o homem que pode compreender os desígnios de Deus?” (Sabedoria 9,13-18)
Salmo: Sl. 89(90) - R/ Vós fostes, ó Senhor, um refúgio para nós.
2ª leitura: “Que o tenhas de volta, não como um escravo, mas como um irmão querido” (Fm 1,9b-10.12-17).
Evangelho: “Quem não renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo” (Lucas 14,25-33).
Viver é abrir-se ao novo, apoiando-se no passado; um novo que pode ser desconcertante e também exigente. Quando, no evangelho de hoje, ouvimos Jesus nos convidar a preferi-lo a todos os membros de nossa família, lembramos Gênesis 2,24: «Deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne.» Fazendo a transposição, veremos que esta fórmula descreve a mesma realidade deste evangelho: «O ser humano, homem ou mulher, deixará seu pai e sua mãe e se unirá ao Cristo, e os dois se tornarão uma só carne.» Em Efésios 5,21-33, Paulo põe o amor entre o homem e a mulher em paralelo com a união de Cristo com o seu corpo que é a Igreja (todos nós reunidos). Deixar tudo para tornar-se um só com Cristo (o evangelho diz «segui-lo») é apresentado no Novo Testamento como análogo ao encontro nupcial. Não se trata de simples metáfora: a união dos esposos é a imagem, o «sacramento», da nossa união com Deus. Mas o que significa preferir Cristo a tudo mais que não seja ele, mesmo em se tratando de nossos entes mais próximos? Creio que Jesus nos quer dizer que temos de preferir o amor à posse. O amor apenas sabe dar, enquanto outras formas de união sabem somente tomar. Se bem que seguir o Cristo é a melhor maneira de amarmos pai, mãe, mulher, filhos etc.…
O que acabamos de dizer exige uma explicação suplementar. Lucas situa estas palavras de Jesus no contexto da sua caminhada para Jerusalém, para a cruz. Ora, todo o relato que segue o versículo 51 do capítulo 9, onde vemos Jesus pôr-se a caminho para «a cidade que mata os profetas», está imerso numa atmosfera de aproximação da morte. Por isso Jesus fala em não preferirmos nem mesmo à nossa própria vida, mas a ele. Pois, segui-lo de fato significa comportar-se como ele se comportou, justamente ele que, em Jerusalém, deu preferência a todos nós, em detrimento de sua própria vida. A reciprocidade, portanto, se impõe. Daí resulta que, só podendo nos tornar imagem e semelhança de Deus fazendo-nos imagem e semelhança de Cristo, é a nossa própria criação que está em jogo. Só podemos existir no amor que nos faz ser e que deve se tornar a nossa própria substância. Estamos, então, nós também, no caminho para Jerusalém. Nem todos, com certeza, destinados a uma morte violenta, mas, todos, sofremos doenças, acidentes, envelhecimento... Cabe a nós acolher tudo isso como um dom da nossa vida e, por aí, unirmo-nos ao Cristo. Devemos compreender, contudo, que o sofrimento em si mesmo não tem valor nenhum, e temos razão de combatê-lo, tanto em nós como nos outros. O que tem valor é o dom, e este dom passa por tudo o que a vida nos traz, quer se trate de alegrias ou de penas. Encontrar e tornar a encontrar Deus em todas as coisas.
Jesus nunca se impõe. Os «se queres» ou «quem quer», por exemplo, «ser meu discípulo», são marcas do relato evangélico. Em Deuteronômio 30,15 e 19 já líamos: «Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade (…) Escolhe, pois, a vida para que vivas...» Ora, em que consiste escolher a vida? O mesmo texto responde: amando a Deus, ou seja, amando e escolhendo o Amor. Ficamos sabendo mais tarde que amar a Deus só pode ser vivido de fato se amamos os outros (ver entre tantos outros lugares 1 João 4,20). Amar é, portanto, responder a um convite de Deus, não sob qualquer forma de coação.
Devemos desconfiar disto que chamamos de amor. Uma ditadura exercida por sentimentos muito violentos significa muitas vezes somente um desejo de possuir, e não uma decisão de se entregar totalmente, para o melhor, mas também, eventualmente, para o pior. Este caráter de uma decisão livre é muito bem ilustrado pelas duas parábolas que enquadram este enunciado das condições necessárias ao seguimento de Jesus. Neste mesmo capítulo, no texto que precede este evangelho, a parábola dos convidados para as núpcias também sublinha o caráter nupcial da união com Deus (ver também em Mateus 22,1-14). Os convidados se esquivaram, porque escolheram outra prioridade em suas vidas. Logo após o convite para seguir Jesus, «carregando (cada um) a sua cruz», temos as parábolas do homem que quer construir uma torre e do rei que quer partir para a guerra. São parábolas que nos convidam a refletir bastante antes de nos decidirmos. Mas não devemos nos preocupar demais, se não temos toda a força que este empreendimento exige: Jesus, na cruz, veio nos buscar donde quer que estejamos, do mais baixo que possamos ter descido.
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A indispensável sabedoria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU