02 Agosto 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 18º Domingo do Tempo Comum, 4 de agosto (Lucas 12,13-21). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Jesus era considerado pelo povo um rabino, um mestre de autoridade na interpretação das Sagradas Escrituras, incluindo a Torá, a Lei. Muitas vezes, portanto, ele foi interrogado por vários ouvintes sobre temas em discussão no judaísmo da época, mas também sobre questões cotidianas.
O Evangelho segundo Lucas testemunha que, durante a sua viagem a Jerusalém, fizeram-lhe, entre outras, uma pergunta muito concreta sobre a divisão da herança, para que ele resolvesse a disputa entre dois irmãos. A Lei estabelecia que, na morte de um sujeito proprietário de bens imóveis, isto é, terra e casa, a herança cabia ao filho homem primogênito, de modo que o patrimônio não fosse dividido, despedaçado (cf. Dt 21,17). No entanto, aos outros filhos, era reservada uma parte dos bens móveis.
No nosso caso, precisamente, parece que é o filho mais novo quem pede a Jesus que intervenha, para que o seu direito seja honrado, provavelmente não reconhecido pelo irmão mais velho. Sempre era possível ou, melhor, era a norma ideal que os irmãos compartilhassem a herança, mostrando, desse modo, que reconheciam a fraternidade como um bem (cf. Sl 133,1); mas isso nem sempre ocorria...
Diante desse pedido, formulado mais como um mandato do que como uma pergunta, Jesus não só se recusa a respondê-lo, mas, em tom impaciente, até rebate: “Homem (ánthrope), quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?”. Há uma recusa de Jesus em responder diretamente à pergunta que lhe foi feita. Não podemos esquecer como isso também faz parte do estilo de Jesus: responder com um mashal, uma parábola ou com outra pergunta enigmática, especialmente quando há controvérsias com os seus adversários. Ao rebater: “Quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?”, Jesus está se recusando, talvez, a substituir a autoridade dos juízes estabelecidos pela Torá de Israel (cf. Dt 16,18-20; 21,15-15-17)? Ou quer indicar que cabe a cada um agir de acordo com a sua consciência, sempre se inspirando nas exigências de justiça e de amor indicadas pela Lei de Deus?
E as perguntas da nossa parte se sucedem, conectando-se umas às outras. Por que Jesus responde desse modo? Para dizer com clareza que ele não se interessa por questões econômicas? Para manifestar que a sua missão é de caráter espiritual? Para deixar aos dois irmãos a responsabilidade de decidir e resolver o conflito?
Eu acredito que Jesus responde de modo impaciente porque leu naquela pretensão não uma sede de justiça, mas sim uma cobiça de posse. Como é que ele, que dissera para dar até a túnica a quem nos tira o nosso manto (cf. Lc 6,29), que recomendaria compartilhar os bens com os pobres (cf. Lc 12,33; 18,22), poderia ser alguém que regula as questões de herança? Se ele tivesse tomado uma decisão jurídica e econômica, poderia ter se beneficiado da gratidão da parte favorecida. Em vez disso, ele escolhe ir da superfície à raiz, descentralizar a atenção daqueles que recorreram a ele.
Jesus sabe que a cobiça, a ganância, quando estão presentes no coração humano, acabam alimentando os conflitos, cegando os olhos, que não conseguem mais ver nem os irmãos nem o próximo. É por isso que ele continua com uma admoestação: “Atenção (horâte)! Tomai cuidado (phylássesthe) contra todo tipo de ganância (pleonexía), porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”. É uma advertência para a vigilância continuamente renovada, para que a sedução da posse e dos bens, verdadeiros ídolos, não impeça ao fiel não apenas o verdadeiro e autêntico reconhecimento de Deus, mas também uma vida plenamente humana, que continua sendo, para cada um, sempre uma tarefa.
Nós, humanos, somos presas de uma fácil ilusão: acreditar que a plenitude da vida vem até nós a partir daquilo que possuímos, do dinheiro, da propriedade, e não daquilo que somos. Como escrevia Erich Fromm há mais de 40 anos, com palavras ainda atualíssimas: “Tem-se a impressão de que a verdadeira essência do ser é ter; de que, se alguém não tem nada, não é nada”.
Para melhor imprimir a sua admoestação no coração e na mente daqueles que o escutam, Jesus conta uma parábola. Há um grande proprietário de terras cujos campos prosperam de modo extraordinário. O fruto é muito abundante, tanto que ele se encontra despreparado: onde poderá guardar toda a colheita? Então, ele começa a pensar em como pode explorar essa abundância e decide demolir os celeiros velhos, pequenos demais, e construir outros maiores, para conservar neles o trigo e outros bens. Mas, nesse ponto, ele também se considera satisfeito, autossuficiente, seguro de si, a ponto de poder dizer para si mesmo: “Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!”.
É um programa de vida no qual o seu “eu” se torna o único sujeito: “Eu farei, eu demolirei, eu construirei, eu guardarei, eu direi para mim mesmo!”. E todo o resto – colheitas, celeiros e bens – é acompanhado pelo adjetivo possessivo “meu”.
Esse, na verdade, é um programa que não é estranho para nós, mas que talvez esteja adormecido nas profundezas do nosso coração, pronto para se tornar desejo e projeto assim que parecer que os nossos bens aumentam e podem nos dar segurança. Nessa situação, nem sequer se consegue vislumbrar a possibilidade da partilha, ler que a abundância das colheitas ou das riquezas acumuladas por nós é uma oportunidade para distribuir esses bens inesperados aos pobres e a quem não tem essa fortuna.
Esse homem, presente também em nós, só sabe ver os próprios bens, em uma solidão da qual não está consciente, cegado pelas próprias riquezas, atordoado...
Mas eis que chega uma surpresa para ele, que faz com que todo o seu programa pareça uma grande tolice e estupidez: repentinamente, chega o fim da sua vida, e ele não poderá levar consigo nada daquilo que acumulou! Só então, tarde demais, esse rico se dá conta de que a riqueza não dá felicidade, não garante a vida autêntica, mas apenas adormece, cega, impede de ver a realidade humana.
Aqui, é preciso recordar a lição do Salmo 49, com o seu refrão afiado, mas muito real: “O homem no bem-estar não entende e não dura, mas é como os animais enviados ao matadouro!” (cf. Sl 49,13.21). O mesmo salmo afirma que, mesmo que o homem enriqueça e aumente o luxo da sua casa, quando morre, não leva nada consigo (cf. Sl 49,17-18): o seu único pastor e patrão é a morte (cf. Sl 49,15)...
Sim, o fato de raciocinar e de se comportar desse modo demonstra ser tolo, insensato, porque manifesta uma ilusão mortífera: a de que a riqueza e a propriedade de muitos bens salvam, dão sentido e significado à vida. Muitas vezes, não admitimos isso, mas na realidade pensamos assim e fazemos desse critério a inspiração para muitas das nossas escolhas...
Na verdade, a morte que espera por todos nós, precisamente por fazer parte da nossa vida sem que possamos removê-la, revela o limite da posse, do poder, do prazer e leva cada pessoa novamente para a realidade e a fragilidade humana. Se tivermos em mente o horizonte da nossa própria morte, somos levados a nos interrogar em profundidade: em que consiste a nossa vida? Em que encontramos um sentido para a fragilidade e buscamos a salvação da morte? Não é por acaso que, na sua carta, Tiago, dirigindo-se aos ricos que se gabam daquilo que fazem e possuem, interroga-os: “De que é feita a vida de vocês?” (cf. Tg 4,14).
A hora da morte também será a do encontro com o juiz, Deus, que tornará manifesto aquilo que cada um de nós pensou, disse e fez nos dias da sua vida terrena. Então, ficará evidente a verdade daquilo que foi vivido aqui e agora: ou seja, o fato de ter levado em conta ou não a vontade de Deus de que todos os seres humanos sejam irmãos e irmãs e participem com justiça na mesa dos bens da terra, naquela partilha capaz de combater a pobreza. Mas quem acumulou para si mesmo com um egoísmo louco, quem não “se enriqueceu junto de Deus”, isto é, compartilhando os seus bens, estará na solidão eterna.
A vida humana não termina aqui, embora muitas vezes esqueçamos disso, e a verdadeira herança a se desejar é a “vida eterna”, que pode ser recebida amando a Deus e ao próximo, não acumulando bens terrenos.
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