08 Março 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 1º Domingo da Quaresma, 10 de março (Lucas 4, 1-13). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É o primeiro domingo da Quaresma, tempo severo, mas “favorável” (2Cor 6, 2) para o cristão: acima de tudo, tempo de luta contra as tentações. Por isso, a Igreja, no início desse tempo, sempre nos oferece o relato das tentações de Jesus no deserto, tentações que, segundo Lucas, estarão sempre presentes na sua vida, até o fim (cf. Lc 23, 35-39). Jesus também sabia que está escrito: “Filho, se quiser servir ao Senhor, prepara-te para a tentação” (Eclo 2, 1).
Jesus havia sido imerso no Jordão pelo seu mestre João Batista, e, durante essa imersão, o Espírito Santo havia descido sobre ele do céu aberto, enquanto a voz do Pai lhe dizia: “Tu és o meu Filho amado! Em ti encontro o meu agrado” (Lc 3, 22). Foi o evento que mudou a vida de Jesus, deu-lhe uma nova forma, porque, a partir daquele momento, ele não é mais apenas o discípulo do Batista, mas é ungido como profeta, repleto do Espírito. Por isso, ele deixa João e os outros membros da comunidade e se afasta do Jordão, entrando no deserto de Judá.
Precisamente o Espírito que desceu sobre ele o leva a esse retiro, à solidão, para pensar, acima de tudo, na missão que o espera. O Espírito o capacitou, impulsionou-o com força para essa nova forma de vida, que verá Jesus como pregador e profeta, mas ele deve fazer uma obra de discernimento: como cumprirá a sua missão? Com que estilo realizará a sua vocação? Como continuará estando à escuta de Deus, o Pai que o gerou (cf. Sl 2, 7, que, de acordo com alguns códices, constitui o conteúdo da voz do Pai no batismo)? Como ele se oporá a tudo o que contradiz a vontade divina?
O retiro no deserto, portanto, é necessário: um retiro de 40 dias, longo, mas com um limite temporal, por estar em vista de outra coisa. Jesus sabe que ir ao deserto significa, em primeiro lugar, despojamento de tudo o que se tem; sabe que a solidão é se esquecer do que se é para os outros; sabe que a penúria de alimento é verificação dos próprios limites humanos, da própria condição de fragilidade, portanto, de mortalidade. Mas só na nudez radical o ser humano conhece a verdade profunda de si mesmo e do mundo a que veio: e, nesse despojamento, a prova, a tentação é necessária, não podemos estar isentos dela.
Esse passo de Jesus já indica como ele tinha, na base da sua escolha, a adesão à realidade, à condição humana. Aquele tempo de 40 dias – já vivido por Moisés (cf. Ex 24, 18; 34.28; Dt 9, 9-11.18.25) e por Elias (cf. 1Re 19, 8), já experimentado nos 40 anos de Israel no deserto (cf. Nm 14, 33-34; 32, 13; Dt 2, 7; 8, 2-4; 29, 4), após a saída em liberdade da imersão no Mar Vermelho – é um tempo de prova que implica fadiga, renúncia, escolha.
Lucas exemplifica em três as tentações que, na realidade, para Jesus, devem ter sido muitas e, com sabedoria antropológica, resume-as nas do comer, do possuir, do dominar.
Mas nos coloquemos à escuta pontual do texto:
“Jesus não comeu nada naqueles dias e depois disso, sentiu fome. O diabo disse, então, a Jesus: ‘Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão’.”
Jesus tem fome e, na necessidade, eis que surge a tentação: subtrair-se da condição humana e recorrer ao milagre, deixando de reconhecer a própria realidade de ser humano. Se eu sinto uma necessidade urgente, uma pulsão forte, a da fome que morde o estômago e causa vertigens, como sair dela? Fazendo qualquer coisa a fim de fugir da necessidade, seríamos tentados a responder: uma tentação tão mais forte quanto mais imperiosa é a necessidade. Mas Jesus jejuou livremente, não forçado, querendo aprender a dizer não, a fazer uma renúncia. Certamente, a tentação da comida é única para Jesus, homem como nós, mas em uma vocação e uma missão únicas recebidas de Deus, que recém o proclamou como seu Filho amado.
Se Jesus pode participar do poder de Deus, por que não recorrer ao milagre, transformando uma pedra do deserto em pão e, assim, poder se saciar? Com esse milagre, porém, ele renunciaria àquilo que escolheu ao se tornar homem: despojar-se dos atributos da sua divindade, condição que compartilhava como Filho de Deus, para ser radicalmente em tudo um ser humano, um terrestre como qualquer um de nós (cf. Fl 2, 6-8).
A tentação, portanto, é a de esquecer a humanização escolhida, de renunciar a ela e de usar o poder de Deus para saciar a fome e preencher o extremo despojamento. Mas Jesus resiste, porque conhece a palavra: “Não só de pão vive o homem” (Dt 8, 3a). Sim, o homem não é somente fome de pão, mas também – como evidencia o paralelo de Mateus que cita toda a passagem do Deuteronômio – “de toda palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8, 3b; Mt 4, 4). E não nos esqueçamos: Jesus multiplicará o pão para as multidões famintas, para os outros, nunca para si mesmo (cf. Lc 9, 12-17)!
Na segunda tentação, Jesus vê do alto todos os reinos da terra, a sua glória (dóxa), a sua riqueza, a sua arrogância, a sua cena mundana. Toda essa riqueza pode estar à sua disposição, todo esse poder (exousía) que é domínio sobre os humanos e sobre a terra pode ser exercido por ele, com uma condição: que Jesus adore a riqueza e o poder, personificados pelo diabo. Se Jesus se submeter aos ídolos da riqueza e do poder, estes, em troca, estarão nas suas mãos, como instrumentos para a sua missão, como garantia de eficácia: ele terá sucesso, terá sucesso em “uma irrefreável ascensão” (Sl 49, 19)...
Mas, mesmo diante dessa pulsão que habita todos os humanos, Jesus sabe dizer não. Ele veio para servir, não para dominar (cf. Mc 10, 45; Mt 20, 28), veio na pobreza, não na riqueza (cf. 2Cor 8, 9). Isso não só não facilitará a sua missão, como marcará visivelmente o seu fracasso de acordo com as evidências mundanas; Jesus, porém, não pensa na sua missão como uma conquista, como uma grande reunião de fiéis a serem dominados. Por isso, ele está livre para responder, citando ainda a Torá: “Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Dt 6, 13).
Mas aqui o diabo também faz uma revelação: a ele foram entregues o poder e a glória deste mundo, e ele pode dá-los a quem quiser, com uma condição: que se tornem seus ministros. Portanto, quem tem poder e glória mundanos, quer o saiba ou não, é um ministro do diabo!
Segue-se, depois, a tentação mais alta, por isso a última, a grande tentação que, por pudor, não explico plenamente, mas à qual apenas faço alusão. Não é apenas a tentação de pôr Deus à prova, forçando a sua mão, mas também é a tentação da “nadidade” [nientità]. Do ponto mais alto da construção religiosa por excelência, o templo, Jesus vê abaixo de si o abismo, que também é o nada, o vazio, porque a razão nos diz que não há nada no abismo, nem mesmo Deus, mas estamos abandonados para sempre, como se nunca tivéssemos nascido: o abismo dá vertigem...
O que Jesus deve fazer diante desse buraco negro? Jogar-se, obrigando o Deus que o declarou Filho a fazer o milagre, isto é, enviando anjos para salvá-lo para impedir a sua queda, como o diabo o tenta citando a Escritura (cf. Sl 91, 11-12)? Ou aceitar a sua situação, a de quem vê o fracasso, o vazio, mas permanece fiel a Deus e não o tenta, não o provoca (cf. Dt 6, 16)?
Sim, essa é a tentação das tentações, já experimentada por Israel no deserto, quando, diante das dificuldades, das contradições e da aparente negação das promessas de Deus, perguntava-se: “O Senhor está no meio de nós ou não?” (Ex 17, 7). Isso ocorre também nos nossos corações, quando o sentimento do fracasso de toda a nossa vida nos pega, surpreende-nos e confunde-nos, até nos faz dizer dentro de nós: “Foi tudo um engano! Deus não estava lá nos nossos inícios, ou: Deus nos abandonou!”. Essa é a tentação que quer contradizer a fé, a confiança depositada em Deus: não blasfemando, não brigando com ele, mas simplesmente negando-o, isto é, expulsando-o do próprio horizonte e da vida.
Jesus sofreu essas tentações como ser humano como nós. Ele não nos entregou uma ficção exemplar, mas viveu verdadeiramente esses abismos, aprendendo assim a aderir à realidade: “Embora sendo Filho de Deus, aprendeu a ser obediente através de seus sofrimentos” (Hb 5, 8). Depois dessa prova do deserto, Jesus já sabe como realizar a missão e como levar a termo a sua vocação, consciente de que o Espírito Santo está com ele e que está repleto da força do Espírito. Mas essa não é uma vitória definitiva para Jesus: o diabo voltará a tentá-lo, “no tempo oportuno”, sempre tentando dividi-lo, de modo que a sua vontade esteja em contradição com a vontade do Pai.
Mas Jesus sempre cumprirá a palavra de Deus e sempre será vencedor sobre toda a tentação! Igual a nós em tudo, exceto no pecado (cf. Hb 2, 17; 4, 15): por isso, triunfará sobre a morte e, como Ressuscitado, viverá para sempre como Senhor do mundo.
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Jesus, tentado como nós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU