03 Agosto 2018
A multiplicação dos pães, com efeito, foi um sinal pascal. E, pela Páscoa, ficamos sabendo que o universo, de uma forma ou de outra, vive desde sempre o gesto pascal: é de sua própria Substância que Deus nos faz existir e nos alimenta. E, assim, tudo é sinal de uma realidade última, que ainda não percebemos plenamente.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 18º Domingo do Tempo comum, do Ciclo B. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas
1ª leitura: «Eis que farei chover para vós o pão do céu» (Êxodo 16,2-4.12-15).
Salmo: Sl. 77(78) - R/ O Senhor deu a comer o pão do céu.
2ª leitura: «Revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus» (Efésios 4,17.20-24).
Evangelho: «Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede» (Jo 6,24-35).
Poderia Deus ter repreendido os filhos de Israel por suas recriminações. Ao contrário, contudo, renovou as suas liberalidades, empenhando-Se em «fazer chover pão», para que comessem até à saciedade. Da mesma forma, desconsiderou Jesus as murmurações dos Judeus, tendo levado estes a desejarem sempre «o verdadeiro pão vindo do céu».
Estávamos tão bem no Egito! Murmuravam os Hebreus durante o Êxodo. Vivíamos lá sob um regime de escravidão; o trabalho era duro e não podíamos nos organizar como um povo constituído. Mas isto já foi esquecido: lá éramos bem alimentados e tínhamos onde morar... Nos dias de hoje, alguns povos que viveram sob regimes ditatoriais, como o soviético por exemplo, poderiam dizer: estávamos até bem; não éramos livres, mas o Estado ocupava-se de nosso abastecimento. Agora temos de assumir nossa sobrevivência com obra de nossas mãos... A primeira leitura faz-nos compreender que a liberdade tem um preço: pede que arrisquemos nossa vida no deserto. Hebreus 2,15 fala dos "que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte". O que é verdade tanto nos campos psicológico, social e político quanto no espiritual. Ao dar a seu povo o maná, Deus embaralhou as cartas: eis aí um pão que vai "cair do céu" sem qualquer outro trabalho que não o de recolhê-lo toda manhã, tão certo como «as panelas de carne» do faraó. Deste modo, passaram a ter agora ‘a liberdade e o pão’, e não mais ‘a liberdade ou a vida’. Mas será que Deus distorceria assim este jogo? Não, pois os Hebreus não podiam estocar o maná. Deviam confiar absolutamente no pão que viria no dia seguinte, sem nenhuma outra garantia que não fosse a palavra de Moisés, a Palavra de um Outro. Suas vidas estavam agora nas mãos de Deus. Mas acreditavam eles que estas mãos de fato fossem benevolentes? Este é o pão da provação. O que, enfim, está posto à prova é todo o dom feito por amor. Quem crê neste dom encontra ao mesmo tempo a vida e a liberdade. Eis-nos aqui, enfim, destituídos de toda certeza, exceto a da fidelidade de Deus.
O pão de Gênesis 3 vinha da terra; aqui temos um pão que "desce do céu". O pão, vindo da terra, assegurava eventualmente apenas uma vida provisória; o pão do céu comunica uma vida eterna. O pão da terra era obtido somente através do trabalho duro; já o pão do céu não exige trabalho algum: é o pão que o Filho do Homem "dará". Para recebê-lo, basta crer que ele é dado. Podemos seguir este tema do trabalho nos versículos 27 e 28 e, no versículo 29, temos a passagem do trabalho à fé, que é puro acolhimento do dom (temos seis menções ao dom, neste evangelho). Mas já não era o maná um "pão do céu"? Não, não era o verdadeiro "pão que veio do céu" (v. 32). Era um pão que perece (o maná não passava da noite), era uma figura apenas fugidia do pão "que permanece até a vida eterna" (v. 27). O maná era o pão para o caminho, para as etapas da nossa caminhada para a Terra Prometida. Já o pão que o Cristo nos dá, e que é Ele mesmo, é o pão do fim dos tempos, do final da estrada. Por ele, a vida de Deus vem para dentro de nós e nós entramos nela. Mas não esqueçamos que, para que isto se realize, não é bastante ir comungar na Eucaristia. É preciso que a cerimônia ritual signifique a nossa escolha, de deixarmo-nos habitar e transformar por esta vida de Deus, que tem como característica ser um dom. Vida que deve tornar-se a nossa vida.
Comer é mais do que comer; o pão é mais do que o pão. "Ficastes satisfeitos porque comestes o pão", disse Jesus, «não porque vistes sinais». Ou seja, na multiplicação dos pães, a multidão deveria ter compreendido toda a imensa ternura que os envolvia, a cada um, e que os fundava. Aliás, independente até mesmo da multiplicação dos pães, a simples cumplicidade entre nossas vidas e o conjunto da natureza que nos conduz e alimenta deveria provocar o nosso espanto e admiração, sendo quais forem as explicações científicas que se possam oferecer. Repitamos com Santo Irineu: "Uma vez que (...) somos nutridos pela criação (...), ele (o Cristo) confirmou (ao dar sua carne e seu sangue) que o cálice que vem da criação era o seu sangue, pelo qual ele fortifica o nosso sangue; ele confirmou que o pão que vem da criação era o seu corpo, pelo qual ele fortifica o nosso corpo." O mistério da criação e o mistério da nossa elevação até à vida de Deus são uma só coisa. O primeiro é o sinal do segundo. O dom de si mesmo que o Cristo nos fez vem "confirmá-lo". A multiplicação dos pães, com efeito, foi um sinal pascal. E, pela Páscoa, ficamos sabendo que o universo, de uma forma ou de outra, vive desde sempre o gesto pascal: é de sua própria Substância que Deus nos faz existir e nos alimenta. E, assim, tudo é sinal de uma realidade última, que ainda não percebemos plenamente.
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"O pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU