26 Janeiro 2018
“Cala-te e sai dele” (Mc 1,25)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 4° Domingo do Tempo Comum - Ciclo B (28/01/2018) que corresponde ao texto bíblico de Marcos 1,21-28.
Estamos fazendo o percurso contemplativo, seguindo o evangelista Marcos. Ele foi o primeiro que escre-veu o Evangelho, por isso conserva o calor dos inícios da vida cristã. É o mais conciso. Não apresenta grandes discursos de Jesus nem conta muitas parábolas. Interessa-lhe sobretudo o cotidiano na vida pública de Jesus: sua atitude vital para com os pobres e excluídos, sua presença terapêutica, sua liberdade diante da religião, do templo, das tradições judaicas, a revelação do novo rosto de Deus, o anúncio da Boa Notícia da Salvação…
A intenção de Marcos é que as pessoas se façam a pergunta chave: “quem é Jesus?”. Todo o seu evange-lho é revelação progressiva da personalidade e da identidade de Jesus.
Jesus não tinha nenhum doutorado na Lei, não tinha nenhum Master em questões do Templo; não era um perito a quem consultar sobre a lei. Jesus era Ele mesmo; seu único título era sua verdade, sua honestidade, sua bondade, sua capacidade de sanar a dor daqueles que sofriam e libertá-los dos maus espíritos que os escravizavam. Era a identidade de si mesmo, plena: a identidade entre o que dizia e fazia, entre o que era e o que ensinava.
Podemos afirmar que Jesus era um “profissional da vida”, um “mestre da vida humana digna”. Não havia estudado em outra universidade a não ser a universidade da vida, do amor, da liberdade...
O evangelho deste domingo é o primeiro ato público de Jesus: estamos num dia típico de sua vida e de sua atividade. Seu primeiro contato com as pessoas, depois do batismo e da experiência do deserto, tem lugar na sinagoga. É um sinal de que a primeira intenção de Jesus foi redirecionar a religiosidade do povo que tinha sido deformada por uma interpretação opressora da Lei. Por duas vezes no relato se faz referência ao ensinamento de Jesus, mas não se diz nada do que ensina. Fala-se de suas obras. As curas e a expulsão de demônios, entendidos como libertação, são a chave para compreender a verdadeira mensagem deste evan-gelho. O que Jesus faz é libertar um homem de um poder opressor, o espírito imundo.
A Boa Notícia que Marcos anuncia é a libertação, em duas direções: da força do mal e da força opressora da Lei, explicada de uma maneira alienante pelos fariseus e letrados. As pessoas reconhecem um novo ensinamento, com autoridade, ou seja, com convicção, com coerência de vida, com profunda fé...
O ensinamento de Jesus é novo porque liberta ao mesmo tempo que ensina. Jesus não ensina nada verbalmente: mostra-se a si mesmo. Marcos dá mais importância ao modo de falar de Jesus que ao conteúdo de seu ensinamento.
De Jesus diziam que “ensinava com autoridade” e não como os escribas e fariseus. Ele tinha a graça de conceder autoridade a cada pessoa, de devolver-lhe sua dignidade, de remeter-lhe a si mesma, de ajudá-la a conectar com seu ser profundo, com aquilo que é mais divino no próprio interior.
Ensina com autoridade quem fala a partir de sua própria experiência e quem, com seu ensinamento, “faz crescer” (a palavra “autoridade” provém do verbo latino “augere”, que significa aumentar, fazer crescer, elevar o outro…); em outras palavras, é despertar a autonomia e a autoria do outro para que ele seja capaz de dar direção à própria vida.
O critério para distinguir quando nos encontramos em presença de quem “fala com autoridade” sempre será o mesmo: sua palavra faz as pessoas crescerem em profundidade.
A “autoridade” de Jesus, portanto, está em que sua palavra e sua vida formam uma unidade plena, porque não diz nada que não esteja já fazendo; suas palavras brotavam de uma experiência profunda que confir-mava com sua vida. Provava com suas obras suas palavras, vivia o que ensinava.
Ao entrar na sinagoga, Jesus se volta para quem não recebia atenção. Ele faz com que o possuído pelo mau espírito se torne o centro das atenções e sua libertação é, ao mesmo tempo, prática e ensino.
O homem possuído é o símbolo de todas as pessoas despersonalizadas, impedidas de falar e agir, como sujeitos da própria vida e história. Sua vida e destino dependiam de “outros” que pensavam, falavam e agiam por elas.
Jesus vai curá-lo com sua presença e também com sua voz. Ao lhe dizer: “cala-te e sai dele”, Jesus está desatando uma vida, está devolvendo ao homem possuído o seu ser essencial. Há palavras que tem força reconstrutora, pois, não só restabelecem a saúde mas ativam a dignidade escondida da pessoa. Dizem que há pessoas capazes de serem curados por uma voz, pelo material sonoro de uma voz determinada.
Quanto aspira nosso coração escutar este convite: “esteja livre...”! Esteja livre daquilo que os outros possam dizer ou pensar a seu respeito; livre do domínio das suas compulsões; livre para amar sem defesas; livre daquilo que se acredita saber sobre si mesmo e sobre os outros; no fundo, esteja livre para ser você mesmo, para poder entrar em uma relação nova com a realidade.
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncios. Em nosso mundo atrofiamos o dom de proferir palavras de vida; elas tem pouco valor e, por isso, precisamos voltar a lapidá-las no silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Tais palavras tem força para curar, como aquela que Jesus proferiu diante do homem possuído pelo mau espírito.
Precisamos receber palavras que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e a diferença. Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos requisitados a entregar aos outros uma palavra de vida.
Jesus foi o homem que movia com suas palavras.
É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Essas palavras são bem-aventuradas, pois são capazes de fazer crescer, sustentar, edificar as pessoas para o convívio social, humano-afetivo, espiritual. São palavras que trazem luz e calor, infundem confiança e segurança.
A palavra tem força de ressurreição, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. As palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento... Quando falamos, algo acontece, muda alguma coisa dentro de nós e ao nosso redor. Aparentemente nada mudou; mas é possível que tudo tenha mudado.
A palavra foi além de sua vibração sonora. Ela contribui para criar o clima, o ar que respiramos... um ambiente que nos plenifica, nos nutre, favorece o encontro e o compromisso e abre possibilidade de viver
Hoje o evangelho nos convida a sermos sinceros conosco mesmos, a revisar nossa conduta cristã.
Devemos expulsar muitos “maus espíritos” interiores (ânsia de poder, rique-za, prestígio, vaidade…) que jogam ao chão nossa dignidade e impedem um testemunho coerente, uma verdadeira autoridade que profere palavras que fazem as pessoas crescer.
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Palavras que destravam a vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU