23 Agosto 2019
Um Governo democrático tem obrigações perante seus cidadãos. A escuridão veio com um recado claro: a verdade sufoca, escreve Jamil Chade, jornalista, em artigo publicado por El País, 22-08-2019.
A manipulação de informação por parte de um poder é tão antiga quanto a humanidade. Historiadores apontam que embates já existiram entre os responsáveis por escolher quais versículos, quais cartas entre apóstolos e quais trechos da passagem de Jesus que deveriam ser editado num livro que ganharia o nome de Bíblia. Mais de 2.000 anos depois, pouco mudou e a história está repleta de episódios em que governos tentam organizar os fatos a seu favor, a demitir aqueles que optam pelos dados científicos e, se necessário, cortar o financiamento de estudos sobre “verdades inconvenientes”.
Nos anos 80, o mundo se deparou com a ousadia de europeus que insistiram que a explosão de Chernobyl não representava uma ameaça. Afinal, a nuvem pararia nas fronteiras e, claro, respeitaria a soberania nacional. Trinta anos depois, doenças entre as pessoas atingidas pela irradiação derreteram aquela versão criminosa.
No ano passado, ao caminhar antes da abertura da Copa do Mundo pelas redondezas do estádio de Moscou, me deparei com um monumento em homenagem a torcedores. Aquela arena guardava um dos segredos mais terríveis da história do futebol e que, em plena era soviética, jamais foi revelada. O local foi inicialmente sede do British River Yacht Club. Mas, em 1917, com a revolução russa, o campo foi tomado pelo governo e transformado em um campo para abrigar o esporte preferido da classe operária: o futebol.
Nos anos 50, o Estádio Lenin seria erguido, com mais de 100 mil lugares. Mas foi em outubro de 1982 que a tragédia ocorreria. Num jogo válido pela Copa Uefa, o Spartak receberia os holandeses do FC Haarlem. O inverno já começava a dar seus primeiros sinais e, naquela noite fria, o fato de o jogo ter atraído apenas 15.000 pessoas levou as autoridades a tomar a decisão de apenas abrir um trecho pequeno da arquibancada. O restante ficaria coberta de neve e de gelo.
O jogo caminhava para o seu final com o placar de um a zero, o que dava a classificação para o Spartak. Antes do apito final, como em qualquer parte do mundo, uma parcela dos torcedores russos começou a se dirigir para fora do estádio, em direção ao metrô. Mas, já nos acréscimos, o time de Moscou faria um segundo gol. E, também como em qualquer parte do mundo, os torcedores que estavam fora tentaram voltar para as arquibancadas. O problema é que se depararam com uma ala violenta dos torcedores do Spartak, que estavam também de saída e os impediu de continuar até os assentos.
Presos no túnel, impossibilitados de voltar ou avançar, na escuridão e com um piso escorregadio com o gelo que jamais fora limpo, aqueles torcedores acabariam esmagados pela massa. A informação, porém, seria censurada. Moscou vivia os últimos dias de Leonid Brejnev e uma crise econômica profunda. A cultura da censura, portanto, se impôs. Quatro meses depois, um processo totalmente sigiloso foi realizado. E, mesmo assim, o administrador do estádio receberia uma pena de somente um ano e meio de trabalhos forçados. Nem o julgamento e nem o caso jamais seriam publicados na imprensa local.
A polícia chegou a alertar aos familiares que seriam presos se contassem o que havia ocorrido. Num enterro realizado às pressas, os parentes tiveram menos de um hora para se despedir das vítimas. Foi apenas no apagar das luzes do regime soviético, em 1989, que as primeiras notícias começaram a ser divulgadas em Moscou. Sete anos depois da tragédia, o que os russos descobriram foi uma tragédia de ampla escala. Oficialmente, 66 pessoas morreram. Mas algumas testemunhas chegam a apontar que o número real poderia atingir a marca de centenas. A verdade era sufocante.
Mais recentemente, quando um jovem em Pequim foi confrontado com a foto emblemática do massacre de Tiananmen — a do manifestante enfrentando os tanques — o chinês se surpreendeu e admitiu que nunca tinha visto aquela imagem. Por 30 anos, o regime comunista tentou de todas as formas a manter aquela imagem censurada de seu próprio povo.
No dia 11 de março de 2004, a capital espanhola foi atingida por atentado terrorista, matando 192 pessoas e ferindo cerca de 1.700. Às vésperas de uma eleição, o Governo deu ordens para que a narrativa apresentada fosse de um ataque do grupo separatista ETA. Uma mentira oficial que se perpetuou por 56 horas. Mas quando a verdade surgiu, os eleitores puniram o Governo nas urnas.
A longa biografia da censura e manipulação ganhou nesta semana mais um capítulo. E foi no Brasil. Em 2019, quando circula pelo mundo fotos nos principais jornais sobre a escuridão que se fez numa das maiores cidades do planeta, não adianta qualificar o fato de “sensacionalismo”, na esperança de que a vulgaridade intelectual vença. Tampouco adianta culpar termômetros colocados em locais “errados”, denunciar um complô marxista e nem cantar o hino nacional sobre troncos mortos.
O Governo, sem provas e como nos momentos mais primários da busca por uma nova narrativa, optou por encontrar culpados entre as ONGs. Apenas para ser alvo de uma imensa reação de desprezo internacional. Como em um trailer de um filme futurista, a fumaça das queimadas que se espalhou mais parecia ser um alerta de que toda manipulação tem seu limite. E que um Governo democrático tem obrigações perante seus cidadãos. A escuridão veio com um recado claro: a verdade sufoca.
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Fumaça das queimadas é um alerta de que toda manipulação tem seu limite - Instituto Humanitas Unisinos - IHU