11 Dezembro 2018
“O típico do cristianismo frente a outras cosmovisões, religiosas ou descrentes, é a síntese, impossível talvez, mas que é preciso estabelecer, entre a máxima afirmação da Transcendência e a mais plena afirmação da imanência: a entrega completa ao que está além e a plena dedicação ao aqui. Porque, por mais incompreensível que pareça, Deus é o infinitamente distante, o incrivelmente próximo e o profundamente íntimo”, escreve José I. González Faus, jesuíta, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 07-12-2018. A tradução é do Cepat.
“Catolicismo não cristão”. A frase pode parecer dura, mas não é minha. Em 1933, Fernando de Los Ríos (um dos pioneiros da Instituição livre de Ensino) escreveu: “pobre catolicismo espanhol que nunca chegou a ser cristão!”. Retire a dose de exagero que possa ter. Contudo, hoje, prefiro me fixar na dose de verdade que ela tem.
Pouco depois, Romano Guardini publicou uma de suas obras mais famosas (A essência do cristianismo). Nela dizia que a essência do cristianismo é simplesmente Jesus como o Cristo. E o que gostaria de destacar agora é que há algumas formas de catolicismo conservador onde Jesus está praticamente ausente e parece substituído por outros pseudocristos.
Confessar Jesus como o Ungido, o encharcado de Deus (isso significa Cristo), implica lhe seguir em seu anúncio e em seu trabalho que ele chamava “reinado de Deus”. Esse reinado de Deus (consequência do anúncio jesuânico de que Deus é pai de todos) significa que o ser humano está acima de todo o sagrado (Mc 2, 27-29), que os condenados da terra são os preferidos de Deus (Lc 6,20-26), que aquilo que é feito a eles, se faz a Deus (Mt 25, 31ss), que o seguidor de Jesus deve perdoar e amar os inimigos (Mt 5, 43-38) e que há uma incompatibilidade entre Deus e o dinheiro (Mc 10, 17 ss)...
O catolicismo não cristão esquece (ou desconhece) esses traços do anúncio jesuânico. Ao esquecê-los, na realidade, não segue a Jesus como Cristo de Deus e o substitui por outros “pseudocristos”, que talvez apelarão à palavra Cristo, mas lhe dando um rosto distinto ao de Jesus. Os exemplos mais frequentes são:
1. Uma cristificação do bispo de Roma. No século XIX, chegou-se a escrever que o papa é como “o Verbo encarnado que se prolonga” e foram atribuídas a ele expressões que a tradição cristã aplicava a Jesus Cristo (“mais alto que os céus, santo e separado dos pecadores...”). O título de “Santo Padre”, que ainda usamos tranquilamente, é um vestígio disso. E hoje estes grupos acusam Francisco de “dessacralizar o papado”, ignorando que a heresia está em eles ter sacralizado o papado.
2. Uma piedade mariana que não parece dirigida a simples jovem de Nazaré, mas a uma figura semidivina, ou a uma deusa grega coroada como Rainha e vestida com algumas joias que Maria nunca utilizou. De maneira vaga, ela é envolvida em uma auréola de pureza etérea que se condensou na expressão “ave Maria puríssima”, que não incomoda ninguém. Contudo, se fosse pedido a eles que a substituíssem por uma “ave Maria pobríssima”, negariam, ignorando que dessa pobreza brota a pureza de Maria.
3. Uma devoção à eucaristia convertida em uma espécie de “Deus feito coisa”, desligada da Ceia de despedida de Jesus e de seus gestos de partir o pão (símbolo da necessidade) e passar a taça (símbolo da alegria). Assim coisificado, Deus pode ser adorado tranquilamente e podemos ir comungar quase à margem de toda a celebração eucarística, só para “receber graça”, mas sem que essa graça nos leve a compartilhar a necessidade e a comunicar a alegria.
4. Um último traço desse catolicismo não cristão pode ser uma forma de relação “contratual” com Deus, que nos permite torná-lo propriedade nossa, bastando que cumpramos nossa parte do contrato. Justamente a relação com Deus que Jesus criticou como “farisaísmo”: tendo a Deus como propriedade privada nossa, somos os melhores e podemos nos sentir superiores aos outros. É aquela velha anedota (colocada nos lábios de uma pobre velhinha, mas que está em muitos corações não tão velhos): “o papa pode mudar o que quiser, mas, ao final, nós, os de sempre, é que vamos nos salvar”.
E “nos salvaremos” porque esse tipo de catolicismo substituiu a confiança, que é o mais característico da fé, pela segurança que nos liberta da entrega confiada. Por isso, costumo dizer que o maior inimigo da fé verdadeira não é propriamente a incredulidade, mas a tentação da segurança.
Realmente, é pouco cristão esse panorama, ainda que se apresente como “muito católico”. Seu traço mais distintivo não é a confiança em Jesus, mas o medo de Jesus e de seu anúncio desse “reinado de Deus” que, por assim dizer, horizontaliza todas as verticalidades pseudorreligiosas. E faz isso não substituindo a vertical pela horizontal (coisa que Jesus nunca pensou), mas, sim, sustentando a horizontal na vertical.
Nesse sentido, o típico do cristianismo frente a outras cosmovisões, religiosas ou descrentes, é a síntese, impossível talvez, mas que é preciso estabelecer, entre a máxima afirmação da Transcendência e a mais plena afirmação da imanência: a entrega completa ao que está além e a plena dedicação ao aqui. Porque, por mais incompreensível que pareça, Deus é o infinitamente distante, o incrivelmente próximo e o profundamente íntimo.
Tomara, pois, que quando Azaña disse aquilo de que a “Espanha deixou de ser católica”, tenha desejado dizer que a Espanha está começando a poder ser cristã...
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“Pobre catolicismo que nunca chegou a ser cristão!”. Artigo de José I. González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU